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terça-feira, 17 de abril de 2007

CANÇÕES E ELEGIAS - Luís de Camões

CANÇÕES E ELEGIAS - Luís de Camões

I

Canção

Fermosa e gentil Dama, quando vejo

a testa de ouro e neve, o lindo aspeito,

a boca graciosa, o riso honesto,

o colo de cristal, o branco peito,

de meu não quero mais que meu desejo,

nem mais de vós que ver tão lindo gesto.

Ali me manifesto

por vosso a Deus e ao mundo; ali me inflamo

nas lágrimas que choro,

e de mim, que vos amo,

em ver que soube amar-vos, me namoro;

e fico por mim só perdido, de arte

que hei ciúmes de mim por vossa parte.

Se porventura vivo descontente

por fraqueza d'esprito, padecendo

a doce pena que entender não sei,

fujo de mim e acolho-me, correndo,

à vossa vista; e fico tão contente

que zombo dos tormentos que passei.

De quem me queixarei

se vós me dais a vida deste jeito

nos males que padeço,

senão de meu sujeito,

que não cabe com bem de tanto preço?

Mas inda isso de mim cuidar não posso,

de estar muito soberbo com ser vosso.

Se, por algum acerto, Amor vos erra

por parte do desejo, cometendo

algum nefando e torpe desatino,

se ainda mais que ver, enfim, pretendo,

fraquezas são do corpo, que é de terra,

mas não do pensamento, que é divino.

Se tão alto imagino que de vista

me perco (peco nisto),

desculpa-me o que vejo;

que se, enfim, resisto

contra tão atrevido e vão desejo,

faço-me forte em vossa vista pura,

e armo-me de vossa fermosura.

Das delicadas sobrancelhas pretas

os arcos com que fere, Amor tomou,

e fez a linda corda dos cabelos;

e porque de vós tudo lhe quadrou,

dos raios desses olhos fez as setas

com que fere quem alça os seus, a vê-los.

Olhos que são tão belos

dão armas de vantagem ao Amor,

com que as almas destrui;

porém, se é grande a dor,

co a alteza do mal a restitui;

e as armas com que mata são de sorte

que ainda lhe ficais devendo a morte.

Lágrimas e suspiros, pensamentos,

quem deles se queixar, fermosa Dama,

mimoso está do mal que por vós sente.

Que maior bem deseja quem vos ama

que estar desabafando seus tormentos,

chorando, imaginando docomente?

Quem vive descontente,

não há-de dar alívio a seu desgosto,

porque se lhe agradeça;

mas com alegre rosto

sofra seus males, para que os mereça;

que quem do mal se queixa, que padece,

fá-lo porque esta glória não conhece.

De modo que, se cai o pensamento

em algüa fraqueza, de contente,

é porque este segredo não conheço;

assi que com razões, não tão somente

desculpo ao Amor do meu tormento,

mas ainda a culpa sua lhe agradeço.

Por esta fé mereço

a graça, que esses olhos acompanha,

o bem do doce riso;

mas, porém, não se ganha

cum paraíso outro paraíso.

E assi, de enleada, a esperança

se satisfaz co bem que não alcança.

Se com razões escuso meu remédio,

sabe, Canção, que porque não vejo,

engano com palavras o desejo.

II

Canção

A instabilidade da Fortuna,

os enganos suaves de Amor cego,

(suaves, se duraram longamente),

direi, por dar à vida algum sossego;

que, pois a grave pena me importuna,

importune meu canto a toda a gente.

E se o passado bem co mal presente

me endurece a voz no peito frio,

o grande desvario

dará de minha pena sinal certo,

que um erro em tantos erros é concerto.

E, pois nesta verdade me confio

(se verdade se achar no mal que digo),

aiba o mundo de Amor o desconcerto,

ue já co a Razão se fez amigo,

só por não deixar culpa sem castigo.

Já Amor fez leis, sem ter comigo algüa;

já se tornou, de cego, arrazoado,

só por usar comigo sem-razões.

E, se em algüa cousa o tenho errado,

com siso, grande dor não vi nenhüa,

nem ele deu sem erros afeições.

Mas, por usar de suas isenções,

buscou fingidas causas por matar-me;

que, para derrubar-me

no abismo infernal de meu tormento,

não foi soberbo nunca o pensamento,

nem pretende mais alto alevantar-me

daquilo que ele quis; e se ele ordena

que eu pague seu ousado atrevimento,

saiba que o mesmo Amor que me condena

me fez cair na culpa e mais na pena.

Os olhos que eu adoro, aquele dia

que desceram ao baixo pensamento,

n'alma os aposentei suavemente;

e pretendendo mais, como avarento,

o coração lhe dei por iguaria,

que a meu mandado tinha obediente.

Porém como ante si lhe foi presente

que entenderam o fim de meu desejo,

ou por outro despejo, que a língua

descobriu por desvario,

de sede morto estou posto num rio,

onde de meu serviço o fruto vejo;

mas logo se alça se a colhê-lo venho,

e foge-me a água, se beber porfio;

assi que em fome e sede me mantenho:

não tem Tântalo a pena que eu sustenho.

Despois que aquela em quem minh'alma vive

quis alcançar o baixo atrevimento,

debaixo deste engano a alcancei:

a nuvem do contino pensamento

ma afigurou nos braços, e assi a tive,

sonhando o que acordado desejei.

Porque a meu desejo me gabei

de alcançar um bem de tanto preço,

além do que padeço,

atado em üa roda estou penando,

que em mil mudanças me anda rodeando

onde, se a algum bem subo, logo deço,

e assi ganho e perco a confiança;

e assi me tem atado ua vingança,

como Ixião, tão firme na mudança.

Quando a vista suave e inumana

meu humano desejo, de atrevido,

cometeu, sem saber o que fazia

([que de sua beleza foi nacido}

o cego Moço, que, co a seta insana,

o pecado vingou desta ousadia),

e afora este mal que eu merecia,

me deu outra maneira de tormento:

que nunca o pensamento,

que sempre voa düa a outra parte,

destas entranhas tristes bem se farte,

imaginando sobre o famulento,

quanto mais come, mais está crecendo,

porque de atormentar-me não se aparte;

assi que para a pena estou vivendo,

sou outro novo Ticio, e não me entendo.

De vontades alheias, que roubava,

e que enganosamente recolhia

em meu fingido peito, me mantinha.

De maneira o engano lhe fingia,

que despois que a meu mando as sojugava,

com amor as matava, que eu não tinha.

Porém, logo o castigo que convinha

o vingativo Amor me fez sentir,

fazendo-me subir

ao monte da aspereza que em vós vejo,

co pesado penedo do desejo,

que do cume do bem me vai cair;

torno a subi-lo ao desejado assento,

torna a cair-me; embalde, enfim, pelejo.

Não te espantes, Sísifo, deste alento,

que as costas o subi do sofrimento.

Dest'arte o sumo bem se me oferece

ao faminto desejo, porque sinta

a perda de perdê-lo mais penosa.

Como o avaro a quem o sonho pinta

achar tesouro grande, onde enriquece

e farta sua sede cobiçosa.

e acordando com fúria pressurosa

vai cavar o lugar onde sonhava,

mas tudo o que buscava

lhe converte em carvão a desventura;

ali sua cobiça mais se apura,

por lhe faltar aquilo que esperava:

dest'arte Amor me faz perder o siso.

Porque aqueles que estão na noite escura,

nunca sentirão tanto o triste abiso,

se ignorarem o bem do Paraíso.

Canção, nô mais, que já não sei que digo;

mas porque a dor me seja menos forte,

diga o pregão a causa desta morte.

III

Canção

Já a roxa manhã clara

do Oriente as portas vem abrindo,

dos montes descobrindo

a negra escuridão da luz avara.

O Sol, que nunca pára,

de sua alegre vista saudoso,

trás ela, pressuroso,

nos cavalos cansados do trabalho, q

ue respiram nas ervas fresco orvalho,

se estende, claro, alegre e luminoso.

Os pássaros, voando

de raminho em raminho modulando,

com ua suave e doce melodia

o claro dia estão manifestando.

A manhã bela e amena,

seu rosto descobrindo, a espessura

se cobre de verdura,

branda, suave, angélica, serena.

Ó deleitosa pena,

ó efeito de Amor tão preeminente

que permite e consente

que onde quer que me ache, e onde esteja,

o seráfico gesto sempre veja,

por quem de viver triste sou contente!

Mas tu, Aurora pura,

de tanto bem dá graças à ventura,

pois as foi pôr em ti tão diferentes,

que representes tanta fermosura.

A luz suave e leda

a meus olhos me mostra por quem mouro,

e os cabelos de ouro

não igual' aos que vi, mas arremeda:

esta é a luz que arreda

a negra escuridão do sentimento

ao doce pensamento;

o orvalho das flores delicadas

são nos meus olhos lágrimas cansadas,

que eu choro co prazer de meu tormento;

os pássaros que cantam

os meus espritos são, que a voz levantam,

manifestando o gesto peregrino

com tão divino som que o mundo espantam.

Assi como acontece

a quem a cara vida está perdendo,

que, enquanto vai morrendo,

algüa visão santa lhe aparece;

a mim, em quem falece

a vida, que sois vós, minha Senhora, a

esta alma que em vós mora

(enquanto da prisão se está apartando)

vos estais juntamente apresentando

em forma da fermosa e roxa Aurora.

Ó ditosa partida!

Ó glória soberana, alta e subida!

Se mo não impedir o meu desejo;

porque o que vejo, enfim, me torna a vida.

Porém a Natureza,

que nesta vista pura se mantinha,

me falta tão asinha,

quão asinha o sol falta à redondeza.

Se houverdes que é fraqueza

morrer em tão penoso e triste estado,

Amor será culpado,

ou vós, onde ele vive tão isento,

que causastes tão longo apartamento,

porque perdesse a vida co cuidado.

Que se viver não posso

(um homem sou só, de carne e osso),

esta vida que perco, Amor ma deu;

que não sou meu: se mouro, o dano é vosso.

Canção de cisne, feita n'hora extrema:

na dura pedra fria

da memória te deixo, em companhia

do letreiro de minha sepultura;

que a sombra escura já me impede o dia.

IV

Canção

Vão as serenas águas

do Mondego descendo

mansamente, que até o mar não param;

por onde minhas mágoas

pouco a pouco crecendo,

para nunca acabar se começaram.

Ali se ajuntaram neste lugar ameno,

aonde agora mouro, testa de nove e ouro,

riso brando, suave, olhar sereno,

um gesto delicado,

que sempre n'alma m'estará pintado.

Nesta florida terra,

leda, fresca e serena,

ledo e contente para mim vivia,

em paz com minha guerra,

contente com a pena

que de tão belos olhos procedia.

Um dia noutro dia

o esperar m'enganava;

longo tempo passei,

co a vida folguei, só

porque em bem tamanho me empregava.

Mas que me presta já,

que tão fermosos olhos não os há?

Ó quem me ali dissera

que de amor tão profundo

o fim pudesse ver ind'algüa hora!

Ó quem cuidar pudera

que houvesse aí no mundo

apartar-m'eu de vós, minha Senhora,

para que desde agora

perdesse a esperança,

e o vão pensamento,

desfeito em um momento,

sem me poder ficar mais que a lembrança,

que sempre estará firme

até o derradeiro despedir-me.

Mas a mor alegria

que daqui levar posso,

com a qual defender-me triste espero,

é que nunca sentia

no tempo que fui vosso

quererdes-me vós quanto vos eu quero;

porque o tormento fero

de vosso apartamento

não vos dará tal pena

como a que me condena:

que mais sentirei vosso sentimento,

que o que minh'alma sente.

Moura eu, Senhora, e vós ficai contente!

Canção, tu estarás

aqui acompanhando

estes campos e estas claras águas,

e por mim ficarás chorando

e suspirando,

e ao mundo mostrando tantas mágoas,

que de tão larga história

minhas lágrimas fiquem por memória.

V

Canção

Se este meu pensamento,

como é doce e suave,

de alma pudesse vir gritando fora,

mostrando seu tormento

cruel, e grave,

diante de vós só, minha Senhora:

pudera ser que agora

o vosso peito duro

tornara manso e brando.

E eu que sempre ando

pássaro solitário, humilde, escuro,

tornado um cisne puro,

brando e sonoro pelo ar voando,

com canto manifesto

pintara meu tormento e vosso gesto.

Pintara os olhos belos

que trazem nas mininas

o Minino que os seus neles cegou;

e os dourados cabelos

em tranças d'ouro finas

a quem o Sol seus raios abaixou;

a testa que ordenou

atura tão formosa;

o bem proporcionado

nariz, lindo, afilado,

que a cada parte tem a fresca rosa;

a boca graciosa,

que querê-la louvar é escusado;

enfim, é um tesouro:

os dentes, perlas; as palavras, ouro.

Vira-se claramente,

ó Dama delicada,

que em vós se esmerou mais a Natureza;

e eu, de gente em gente,

trouxera trasladada

em meu tormento vossa gentileza.

Somente a aspereza

de vossa condição,

Senhora, não dissera,

porque se não soubera

que em vós podia haver algum senão.

E se alguém, com razão,

—Porque morres? dissera, respondera:

—Mouro porque é tão bela

que inda não sou para morrer por ela.

E se pola ventura,

Dama, vos ofendesse,

escrevendo de vós o que não sento,

e vossa fermosura

tão baixo não descesse

que a alcançasse um baixo entendimento,

seria o fundamento

daquilo que cantasse todo de puro amor,

porque vosso louvor

em figura de mágoas se mostrasse.

E onde se julgasse a causa pelo efeito,

minha dor diria ali sem medo:

quem me sentir, verá de quem procedo.

Então amostraria

os olhos saudosos,

o suspirar que a alma traz consigo;

a fingida alegria,

os passos vagarosos,

o falar, o esquecer-me do que digo;

um pelejar comigo,

e logo desculpar-me;

um recear, ousando;

andar meu bem buscando,

e de poder achá-lo acovardar-me;

enfim, averiguar-me

que o fim de tudo quanto estou falando

são lágrimas e amores;

são vossas isenções e minhas dores.

Mas quem terá, Senhora,

palavras com que iguale

com vossa fermosura minha pena;

que, em doce voz, de fora

aquela glória fale

que dentro na minh'alma Amor ordena?

Não pode tão pequena

força de engenho humano

com carga tão pesada,

se não for ajudada

dum piedoso olhar, dum doce engano;

que, fazendo-me o dano

tão deleitoso, e a dor tão moderada,

que, enfim, se convertesse

nos gostos dos louvores que escrevesse.

Canção, não digas mais; e se teus versos

à pena vêm pequenos,

não queiram de ti mais, que dirás menos.

VI

Canção

Com força desusada

aquenta o fogo eterno

üa ilha lá nas partes do Oriente,

de estranhos habitada,

aonde o duro Inverno

os campos reverdece alegremente.

A lusitana gente

por armas sanguinosas,

tem dela senhorio.

Cercada está dum rio

de marítimas águas saudosas;

das ervas que aqui nascem,

os gados juntamente e os olhos pascem.

Aqui minha ventura

quis que üa grã parte

da vida, que não tinha, se passasse,

para que a sepultura

nas mãos do fero Marte

de sangue e de lembranças matizasse.

Se Amor determinasse

que, a troco desta vida,

de mim qualquer memória

ficasse, como história

que de uns fermosos olhos fosse lida,

a vida e alegria

por tão doce memória trocaria.

Mas este fingimento,

por minha dura sorte,

com falsas esperanças me convida.

Não cuide o pensamento

que pode achar na morte

o que não pôde achar tão longa vida.

Está já tão perdida

a minha confiança

que, de desesperado

em ver meu triste estado,

também da morte perco a esperança.

Mas oh! que se algum dia

desesperar pudesse, viveria.

De quanto tenho visto

já 'gora não m'espanto,

que até desesperar se me defende.

Outrem foi causa disto,

que eu nunca pude tanto

que causasse este fogo que me encende.

Se cuidam que me ofende

temor de esquecimento,

oxalá meu perigo

me fora tão amigo

que algum temor deixara ao pensamento!

Quem viu tamanho enleio

que houvesse ai esperança sem receio?

Quem tem que perder possa

se pode recear.

Mas triste quem não pode já perder!

Senhora, a culpa é vossa,

que para me matar

bastará ü'hora só de vos não ver.

Puseste-me em poder

de falsas esperanças;

e, do que mais me espanto:

que nunca vali tanto

que vivesse também com esquivanças.

Valia tão pequena

não pode merecer tão doce pena.

Houve-se Amor comigo

tão brando e pouco irado,

quanto agora em meus males se conhece;

que não há mor castigo

para quem tem errado q

ue negar-lhe o castigo que merece.

E bem como acontece

que assi como ao doente

da cura despedido,

o médico sabido

tudo quanto deseja lhe consente,

assi me consentia

esperança, desejo e ousadia.

E agora venho a dar

conta do bem passado

a esta triste vida e longa ausência.

Quem pode imaginar

que pode haver pecado

que mereça tão grave penitência?

Olhai que é consciência,

por tão pequeno erro,

Senhora, tanta pena!

Não vedes que é onzena?

Mas se tão longo e mísero desterro

vos dá contentamento,

nunca se acabe nele meu tormento.

Rio fermoso e claro,

e vós, ó arvoredos,

que os justos vencedores coroais,

e ao cultor avaro,

continuamente ledos,

dum tronco só diversos frutos dais;

assi nunca sintais

do tempo injúria algüa,

que em vós achem abrigo

as mágoas que aqui digo,

enquanto der o Sol virtude à Lüa;

porque de gente em gente

saibam que já não mata a vida ausente.

Canção, neste desterro viverás,

Voz nua e descoberta,

até que o tempo em Eco te converta.

VII

Canção

Manda-me Amor que cante docemente

o que ele já em minh'alma tem impresso

com pressuposto de desabafar-me;

e porque com meu mal seja contente,

diz que ser de tão lindos olhos preso,

contá-lo bastaria a contentar-me.

Este excelente modo de enganar-me

tomara eu só de Amor por interesse,

se não se arrependesse

co a pena o engenho escurecendo.

Porém a mais me atrevo,

em virtude do gesto de qu'escrevo;

e se é mais o que canto que o qu'entendo,

invoco o lindo aspeito,

que pode mais que Amor em meu defeito.

Sem conhecer Amor viver soía,

seu arco e seus enganos desprezando,

quando vivendo deles me mantinha.

O Amor enganoso, que fingia

mil vontades alheias enganando,

me fazia zombar de quem o tinha.

No Touro entrava Febo, e Progne vinha;

o corno de Aquelôo Flora entornava,

quando o Amor soltava

oS fios d'ouro, as tranças enerespadas,

ao doce vento esquivas,

dos olhos rutilando chamas

vivas, e as rosas entre a nove semeadas,

co riso tão galante

que um peito desfizera de diamante.

Um não sei quê, suave, respirando,

causava um admirado e novo espanto,

que as cousas insensíveis o sentiam.

E as gárrulas aves levantando

vozes desordenadas em seu canto,

como em meu desejo se entendiam.

As fontes cristalinas não corriam,

inflamadas na linda vista pura;

florescia a verdura que, andando,

cos divinos pés tocava;

os ramos se abaixavam,

tendo enveja das ervas que pisavam

(ou porque tudo ante ela se abaixava).

Não houve coisa, enfim,

que não pasmasse dela, e eu de mim.

Porque quando vi dar entendimento

às cousas que o não tinham, o temor

me fez cuidar que efeito em mim faria.

Conheci-me não ter conhecimento;

e nisto só o tive, porque Amor

mo deixou, porque visse o que podia.

Tanta vingança Amor de mim queria

que mudava a humana natureza:

os montes e a dureza

deles, em mim, por troca, traspassava.

O que gentil partido!

Trocar o ser do monte sem sentido,

pelo que num juízo humano estava!

Olhai que doce engano:

tirar comum proveito de meu dano!

Assi que, indo perdendo o sentimento

a parte racional, me entristecia

vê-la a um apetite sometida;

mas dentro n'alma o fim do pensamento

por tão sublime causa me dezia

que era razão ser vencida.

Assi que, quando a via ser perdida,

a mesma perdição a restaurava;

e em mansa paz estava

cada um com seu contrário num sujeito.

Ó grão concerto este!

Quem será que não julgue por celeste

a causa donde vem tamanho efeito

que faz num coração

que venha o apetite a ser razão?

Aqui senti de Amor a mor fineza,

como foi ver sentir o insensível,

e o ver a mim de mim mesmo perder-me;

enfim, senti negar-se a natureza;

por onde cri que tudo era possível

aos lindos olhos seus, senão querer-me.

Despois que já senti desfalecer-me,

em lugar do sentido que perdia,

não sei que m'escrevia

dentro n'alma co as letras da memória,

o mais deste processo

co claro gesto juntamente impresso

que foi a causa de tão longa história.

Se bem a declarei,

eu não a escrevo, d'alma a trasladei.

Canção, se quem te ler

não crer dos olhos lindos o que dizes,

pelo que em si se esconde,

os sentidos humanos, lhe responde,

não podem dos divinos ser juízes,

[sendo um pensamento

que a falta supra a fé do entendimento].

VIII

Canção

Tomei a triste pena

já de desesperado

de vos lembrar as muitas que padeço,

com ver que me condena

a ficar eu culpado

o mal que me tratais e o que mereço.

Confesso que conheço

que, em parte, a causa dei

[a] o mal em que me vejo,

pois sempre meu desejo

a tão largas promessas entreguei;

mas não tive suspeita

que seguísseis tenção tão imperfeita.

Se em vosso esquecimento

tão envolto estou

como os sinais demonstram, que mostrais;

vivo neste tormento,

lembranças mais não dou

que as de razão tomar queirais:

olhai que me tratais

assi de dia em dia

com vossas esquivanças;

e as vossas esperanças,

de que, vãmente, eu me enriquecia,

renovam a memória;

pois com tê-la de vós, só tenho glória.

E se isto conhecêsseis

ser verdade pura

como ouro de Arábia reluzente,

inda que não quisésseis,

a condição tão dura

mudáreis noutra muito diferente.

E eu, como inocente

que estou neste caso,

isto em mãos pusera

de quem sentença dera

que ficasse o direito justo e raso,

se não arreceara

que a vós por mim, e a mim por vós matara.

Em vós escrita vi

vossa grande dureza,

e n'alma escrita está que de vós vive;

não que acabasse ali

sua grande firmeza

o triste desengano que então tive;

porque antes que a dor prive

de todos meus sentidos,

ao grande tormento

acode o entendimento

com dous fortes soldados, guarnecidos

de rica pedraria,

que ficam sendo minha luz e guia.

Destes acompanhado,

estou posto sem medo

a tudo o que o fatal destino ordene;

pode ser que, cansado,

ou seja tarde, ou cedo,

com pena de penar-me, me despene.

E quando me condene

(que isto é o que espero)

inda a maiores dores,

perdidos os temores,

por mais que venha, não direi: não quero.

Contudo estou tão forte

que nem me mudará a mesma morte.

Canção, se já não queres

ver tanta crueldade,

lá vás onde verás minha verdade.

IX

Canção

Junto de um seco, fero e estéril monte,

inútil e despido, calvo, informe,

da natureza em tudo aborrecido;

onde nem ave voa, ou fera dorme,

nem rio claro corre, ou ferve fonte,

nem verde ramo faz doce ruído;

cujo nome, do vulgo introduzido

é felix, por antífrase, infelice;

o qual a Natureza

situou junto à parte

onde um braço de mar alto reparte

Abássia, da arábica aspereza,

onde fundada já foi Berenice,

ficando a parte donde

o sol que nele ferve se lhe esconde;

nele aparece o Cabo com que a costa

africana, que vem do Austro correndo,

limite faz, Arómata chamado

(Arómata outro tempo, que, volvendo

os céus, a ruda língua mal composta,

dos próprios outro nome lhe tem dado).

Aqui, no mar, que quer apressurado

entrar pela garganta deste braço,

me trouxe um tempo e teve

minha fera ventura.

Aqui, nesta remota, áspera e dura

parte do mundo, quis que a vida breve

também de si deixasse um breve espaço,

porque ficasse a vida

pelo mundo em pedaços repartida.

Aqui me achei gastando uns tristes dias,

tristes, forçados, maus e solitários,

trabalhosos, de dor e d'ira cheios,

não tendo tão somente por contrários

a vida, o sol ardente e águas frias,

os ares grossos, férvidos e feios,

mas os meus pensamentos, que são meios

para enganar a própria natureza,

também vi contra mi

trazendo-me à memória

algüa já passada e breve glória,

que eu já no mundo vi, quando vivi,

por me dobrar dos males a aspereza,

por me mostrar que havia

no mundo muitas horas de alegria.

Aqui estiv'eu co estes pensamentos

gastando o tempo e a vida; os quais tão alto

me subiam nas asas, que cala

(e vede se seria leve o salto!)

de sonhados e vãos contentamentos

em desesperação de ver um dia.

Aqui o imaginar se convertia

num súbito chorar, e nuns suspiros

que rompiam os ares.

Aqui, a alma cativa,

chagada toda, estava em carne viva,

de dores rodeada e de pesares,

desamparada e descoberta aos tiros

da soberba Fortuna;

soberba, inexorável e importuna.

Não tinha parte donde se deitasse,

nem esperança algüa onde a cabeça

um pouco reclinasse, por descanso.

Todo lhe he dor e causa que padeça,

mas que pereça não, porque passasse

o que quis o Destino nunca manso.

Oh! que este irado mar, gritando, amanso!

Estes ventos da voz importunados,

parece que se enfreiam!

Somente o Céu severo,

as Estrelas e o Fado sempre fero,

com meu perpétuo dano se recreiam,

mostrando-se potentes e indignados

contra um corpo terreno,

bicho da terra vil e tão pequeno.

Se de tantos trabalhos só tirasse

saber inda por certo que algu'hora

lembrava a uns claros olhos que já vi;

e se esta triste voz, rompendo fora,

as orelhas angélicas tocasse

daquela em cujo riso já vivi;

a qual, tornada um pouco sobre si,

revolvendo na mente pressurosa

os tempos já passados

de meus doces errores,

de meus suaves males e furores,

por ela padecidos e buscados,

tornada (inda que tarde) piadosa,

um pouco lhe pesasse

e consigo por dura se julgasse;

isto só que soubesse, me seria

descanso para a vida que me fica;

co isto afagaria o sofrimento.

Ah! Senhora, Senhora, que tão rica

estais, que cá tão longe, de alegria,

me sustentais cum doce fingimento!

Em vos afigurando o pensamento,

foge todo o trabalho e toda a pena.

Só com vossas lembranças

me acho seguro e forte

contra o rosto feroz da fera Morte,

e logo se me ajuntam esperanças

com que a fronte, tornada mais serena,

torna os tormentos graves

em saudades brandas e suaves.

Aqui co elas fico, perguntando

aos ventos amorosos, que respiram

da parte donde estais, por vós, Senhora;

às aves que ali voam, se vos viram,

que fazíeis, que estáveis praticando,

onde, como, com quem, que dia e que hora.

Ali a vida cansada, que melhora,

toma novos espritos , com que vença

a Fortuna e Trabalho,

só por tornar a vervos ,

só por ir a servir-vos e querer-vos.

Diz-me o Tempo, que a tudo dará talho;

mas o Desejo ardente, que detença

nunca sofreu, sem tento

m'abre as chagas de novo ao sofrimento.

Assi vivo; e se alguém te perguntasse,

Canção, como não mouro,

podes-lhe responder que porque mouro.

X

Canção

Vinde cá, meu tão certo secretário

dos queixumes que sempre ando fazendo,

papel, com que a pena desafogo!

As sem-razões digamos que, vivendo,

me faz o inexorável e contrário

Destino, surdo a lágrimas e a rogo.

Deitemos água pouca em muito fogo;

acenda-se com gritos um tormento

que a todas as memórias seja estranho.

Digamos mal tamanho

a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,

a quem já muitas vezes o contei,

tanto debalde como o conto agora;

mas, já que para errores fui nascido,

vir este a ser um deles não duvido.

Que, pois já de acertar estou tão fora,

não me culpem também, se nisto errei.

Sequer este refúgio só terei:

falar e errar sem culpa, livremente.

Triste quem de tão pouco está contente!

Já me desenganei que de queixar-me

não se alcança remédio; mas, quem pena,

forçado lhe é gritar, se a dor é grande.

Gritarei; mas é débil e pequena

a voz para poder desabafar-me,

porque nem com gritar a dor se abrande.

Quem me dará sequer que fora mande

lágrimas e suspiros infinitos

iguais ao mal que dentro n'alma mora?

Mas quem pode algu'hora

medir o mal com lágrimas ou gritos?

Enfim, direi aquilo que me ensinam

a ira, a mágoa, e delas a lembrança,

que é outra dor por si, mais dura e firme.

Chegai, desesperados, para ouvir-me,

e fujam os que vivem de esperança

ou aqueles que nela se imaginam,

porque Amor e Fortuna determinam

de lhe darem poder para entenderem,

à medida dos males que tiverem.

{Quando vim da materna sepultura

de novo ao mundo, logo me fizeram

Estrelas infelices obrigado;

com ter livre alvedrio, mo não deram,

que eu conheci mil vezes na ventura

o milhor, e pior segui, forçado.

E, para que o tormento conformado

me dessem com a idade, quando abrisse

inda minino, os olhos, brandamente,

mandam que, diligente,

um Minino sem olhos me ferisse.

As lágrimas da infância já manavam

com üa saudade namorada;

o som dos gritos, que no berço dava,

já como de suspiros me soava.

Co a idade e Fado estava concertado;

porque quando, por caso, me embalavam,

se versos de Amor tristes me cantavam,

logo m'adormecia a natureza,

que tão conforme estava co a tristeza}

Foi minha ama ua fera, que o destino

não quis que mulher fosse a que tivesse

tal nome para mim; nem a haveria.

Assi criado fui, porque bebesse

o veneno amoroso, de minino,

que na maior idade beberia,

e, por costume, não me mataria.

Logo então vi a imagem e semelhança

daquela humana fera tão fermosa,

suave e venenosa,

que me criou aos peitos da esperança;

de que eu vi despois o original,

que de todos os grandes desatinos

faz a culpa soberba e soberana.

Parece-me que tinha forma humana,

mas cintilava espíritos divinos.

Um meneio e presença tinha tal

que se vangloriava todo o mal

na vista dela; a sombra, co a viveza,

excedia o poder da Natureza.

Que género tão novo de tormento

teve Amor, que não fosse, não somente

provado em mim, mas todo executado?

Implacáveis durezas, que o fervente

desejo, que dá força ao pensamento,

tinham de seu propósito abalado,

e de se ver, corrido e injuriado; a

qui, sombras fantásticas, trazidas

de algüas temerárias esperanças;

as bem-aventuranças

nelas também pintadas e fingidas;

mas a dor do desprezo recebido,

que a fantasia me desatinava,

estes enganos punha em desconcerto;

aqui, o adevinhar e o ter por certo

que era verdade quanto adevinhava,

e logo o desdizer-me, de corrido;

dar às cousas que via outro sentido,

e para tudo, enfim, buscar razões;

mas eram muitas mais as sem-razões.

Não sei como sabia estar roubando

cos raios as entranhas, que fugiam

por ela, pelos olhos sutilmente!

Pouco a pouco invencíveis me saiam,

bem como do véu húmido exalando

está o sutil humor o Sol ardente.

Enfim, o gesto puro e transparente,

para quem fica baixo e sem valia

este nome de belo e de fermoso;

o doce e piadoso

mover de olhos, que as almas suspendia

foram as ervas mágicas, que o Céu

me fez beber; as quais, por longos anos,

noutro ser me tiveram transformado,

e tão contente de me ver trocado

que as mágoas enganava cos enganos;

e diante dos olhos punha o véu

que me encobrisse o mal, que assi creceu,

como quem com afagos se criava

daquele para quem crecido estava].

Pois quem pode pintar a vida ausente, c

om um descontentar-me quanto via,

e aquele estar tão longe donde estava,

o falar, sem saber o que dezia,

andar, sem ver por onde, e juntamente

suspirar sem saber que suspirava?

Pois quando aquele mal me atormentava

e aquela dor que das tartáreas águas

saiu ao mundo, e mais que todas dói,

que tantas vezes sói

duas iras tornar em brandas mágoas;

agora, co furor da mágoa irado,

querer e não querer deixar de amar,

e mudar noutra parte por vingança

o desejo privado de esperança,

que tão mal se podia já mudar;

agora, a saudade do passado

tormento, puro, doce e magoado,

fazia converter estes furores

em magoadas lágrimas de amores.

Que desculpas comigo que buscava

quando o suave Amor me não sofria

culpa na cousa amada, e tão amada!

enfim, eram remédios que fingia

o medo do tormento que ensinava

a vida a sustentar-se, de enganada.

Nisto ua parte dela foi passada,

na qual se tive algum contentamento

breve, imperfeito, tímido, indecente,

não foi senão semente

de longo e amaríssimo tormento.

Este curso contino de tristeza,

estes passos tão vãmente espalhados,

me foram apagando o ardente gosto,

que tão de siso n'alma tinha posto,

daqueles pensamentos namorados

em que eu criei a tenta natureza,

que do longo costume da aspereza,

contra quem força humana não resiste,

se converteu no gosto de ser triste.

Dest'arte a vida noutra fui trocando;

eu não, mas o destino fero, irado,

que eu ainda assi por outra não trocara.

Fez-me deixar o pátrio ninho amado,

passando o longo mar, que ameaçando

tantas vezes me esteve a vida cara.

Agora, exprimentando a fúria rara

de Marte, que cos olhos quis que logo

visse e tocasse o acerbo fruto seu

(e neste escudo meu

a pintura verão do infesto fogo);

agora, peregrino vago e errante,

vendo nações, linguages e costumes,

Céus vários, qualidades diferentes,

só por seguir com passos diligentes

a ti, Fortuna injusta, que consumes

as idades, levando-lhe diante

üa esperança em vista de diamante,

mas quando das mãos cai se conhece

que é frágil vidro aquilo que aparece.

A piadade humana me faltava,

a gente amiga já contrária via,

no primeiro perigo; e no segundo,

terra em que pôr os pés me falecia,

ar para respirar se me negava,

e faltavam-me, enfim, o tempo e o mundo.

Que segredo tão árduo e tão profundo:

nascer para viver, e para a vida

faltar-me quanto o mundo tem para ela!

E não poder perdê-la,

estando tantas vezes já perdida!

Enfim, não houve transe de fortuna,

nem perigos, nem casos duvidosos,

injustiças daqueles, que o confuso

regimento do mundo, antigo abuso,

faz sobre os outros homens poderosos,

que eu não passasse, atado à grã coluna

do sofrimento meu, que a importuna

perseguição de males em pedaços

mil vezes fez, à força de seus braços.

Não conto tantos males como aquele

que, despois da tormenta procelosa,

os casos dela conta em porto ledo;

que ainda agora a Fortuna flutuosa

a tamanhas misérias me compele,

que de dar um só passo tenho medo.

Já de mal que me venha não me arredo,

nem bem que me faleça já pretendo,

que para mim não val astúcia humana;

de força soberana,

la Providência, enfim, divina pendo.

Isto que cuido e vejo, às vezes tomo

para consolação de tantos danos.

Mas a fraqueza humana, quando lança

os olhos no que corre, e não alcança

senão memória dos passados anos,

as águas que então bebo, e o pão que como,

lágrimas tristes são, que eu nunca domo

senão com fabricar na fantasia

fantásticas pinturas de alegria.

Que se possível fosse, que tornasse

o tempo para trás, como a memória,

pelos vestígios da primeira idade,

e de novo tecendo a antiga história

de meus doces errores, me levasse

pelas flores que vi da mocidade;

e a lembrança da longa saudade

então fosse maior contentamento,

vendo a conversação leda e suave,

onde üa e outra chave esteve

de meu novo pensamento,

os campos, as passadas, os sinais,

a fermosura, os olhos, a brandura,

a graça, a mansidão, a cortesia,

a sincera amizade, que desvia

toda a baixa tenção, terrena, impura,

como a qual outra algüa não vi mais...

Ah! vês memórias, onde me levais

o fraco coração, que ainda não posso

domar este tão vão desejo vosso?

Nô mais, Canção, nô mais; que irei falando,

sem o sentir, mil anos. E se acaso

te culparem de larga e de pesada,

não pode ser (lhe dize) limitada

a água do mar em tão pequeno vaso.

Nem eu delicadezas vou cantando

co gosto do louvor, mas explicando

puras verdades já por mim passadas.

Oxalá foram fábulas sonhadas!

XI

Elegia

O Poeta Simónides, falando

co capitão Temístocles, um dia,

em cusas de ciência praticando,

ü a arte singular lhe prometia,

que então compunha, com que lhe ensinasse

a se lembrar de tudo o que fazia;

onde tão sutis regras lhe mostrasse

que nunca lhe passasse da memória

em nenhum tempo as cousas que passasse.

Bem merecia, certo, fama e glória

quem dava regra contra o esquecimento

que enterra em si qualquer antiga história.

Mas o capitão claro, cujo intento

bem diferente estava, porque havia

as passadas lembranças por tormento;

ilustre Simónides! (dezia)

Pois tanto em teu engenho te confias

que mostras à memória nova via,

e me desses üa arte que em meus dias

me não lembrasse nada do passado,

oh! quanto milhor obra me farias!

Se este excelente dito ponderado

fosse por quem se visse estar ausente,

em longas esperanças degradado,

ah! como bradaria justamente:

Simónides, inventa novas artes;

não meças o passado co presente!

Que, se é forçado andar por várias partes

buscando à vida algum descanso honesto,

que tu, Fortuna injusta, mal repartes;

se o duro trabalho é manifesto

que por grave que seja, há-de passar-se

com animoso esprito e ledo gesto;

de que serve às pessoas alembrar-se

do que se passou já, pois tudo passa,

senão de entristecer-se e magoar-se?

Se noutro corpo üa alma se traspassa,

não, como quis Pitágoras, na morte

mas como manda Amor na vida escassa;

e se este Amor no mundo está de sorte

que na virtude só dum lindo objecto

tem um corpo sem alma, vivo e forte;

onde este objecto falta, que é defecto

tamanho para a vida, que já nela

me está chamando à pena a dura Alecto;

porque me não criara minha estrela

selvático no mundo, e habitante

na dura Cítia, ou na aspereza dela,

ou no Cáucaso horrendo? Fraco infante,

criado ao peito d'algüa tigre hircana,

homem fora formado de diamante,

porque a cerviz ferina e inumana

não sometera ao jugo e dura lei

daquele que dá vida quando engana.

Ou, em pago das águas qu'estilei,

as que do mar passei foram de Lete, p

ara que me esquecera o que passei.

Que o bem que a esperança vã promete,

ou a morte o estorva, ou a mudança,

que é mal que ua alma em lágrimas derrete.

Já, Senhor, cairá como a lembrança,

no mal, do bem passado é triste e dura,

pois nasce aonde morre a esperança.

E se quiser saber como se apura

nua alma saudosa, não se enfade

de ler tão longa e mísera escritura.

Soltava Eolo a rédea e liberdade

ao manso Favónio brandamente,

e eu já tinha solta a saudade.

Neptuno tinha posto o seu tridente;

a proa a branca escuma dividia,

co a gente marítima contente.

O coro das Nereidas nos seguia,

os ventos, namorada Galateia

consigo, sossegados, os movia.

Das argênteas conchinhas, Panopeia

andava pelo mar fazendo molhos,

Melanto, Dinamene, com Ligeia.

Eu, trazendo lembranças por antolhos,

trazia os olhos na água sossegada,

e a água sem sossego nos meus olhos.

A bem-aventurança já passada

diante mim tinha tão presente

como se não mudasse o tempo nada.

E com o gesto imoto e descontente,

cum suspiro profundo, e mal ouvido,

por não mostrar meu mal a toda a gente,

dezia: Ó claras Ninfas! Se o sentido

em puro amor tivestes, e inda agora

da memória o não tendes esquecido;

se, porventura, fordes algüa hora

aonde entra o grão Tejo a dar tributo

a Tétis, que vós tendes por Senhora;

ou por verdes o prado verde enxuto,

ou por colherdes ouro rutilante,

das tágicas areias rico fruto;

nelas em verso heróico e elegante,

escrevei cüa concha o que em mim vistes:

pode ser que algum peito se quebrante.

E contando de mim memórias tristes,

os pastores do Tejo, que me ouviam,

ouçam de vós as mágoas que me ouvistes.

Elas, que já no gesto me entendiam,

nos meneios das ondas me mostravam

que em quanto lhe pedia consentiam.

Estas lembranças, que me acompanhavam

pola tranquilidade da bonança,

nem na tormenta grave me deixavam.

Porque, chegado ao Cabo da Esperança,

começo da saudade que renova,

lembrando a longa e áspera mudança;

debaixo estando já da Estrela nova,

que no novo Hemisfério resplandece,

dando do segundo axe certa prova;

eis a noite com nuvens escurece,

do ar supitamente foge o dia,

e o largo oceano se embravece.

A máquina do Mundo parecia

que em tormenta se vinha desfazendo,

em serras todo o mar se convertia.

Lutando Bóreas fero e Noto horrendo,

sonoras tempestades levantavam,

das naus as velas côncavas rompendo.

As cordas, ao ruído, associavam,

os marinheiros, já desesperados,

com gritos para o Céu o ar coalhavam.

Os raios por Vulcano fabricados

vibrava o fero e áspero Tonante,

tremendo os Pólos ambos, de assombrados!

Ali Amor mostrando-se possante

e que por nenhum modo não fugia,

mas quanto mais trabalho, mais constante;

vendo a morte diante, em mim dezia:

Se algüa hora, Senhora, vos lembrasse,

nada do que passei me lembraria.

Enfim, nunca houve cousa que mudasse

o firme Amor do intrínseco daquele

em cujo peito üa vez de siso entrasse.

üa cousa, Senhor, por certo assele;

que nunca Amor se afina, nem se apura,

enquanto está presente a causa dele.

Dest'arte me chegou minha ventura

a esta desejada e longa terra,

de todo o pobre honrado sepultura.

Vi quanta vaïdade em nós se encerra,

e dos próprios quão pouca; contra quem

foi logo necessário termos guerra.

Que üa ilha que o rei de Porcá tem,

que o rei da Pimenta lhe tomara,

fomos tomar-lha, e sucedeu-nos bem.

Com üa armada grossa, que ajuntara

o vizo-rei de Goa, nos partimos

com toda a gente d'armas que se achara,

e com pouco trabalho destruímos

a gente no curvo arco exercitada;

com mortes, com incêndios, os punimos.

Era a ilha com águas alagada,

de modo que se andava em almadias;

enfim, outra Veneza trasladada.

Nela nos detivemos sós dous dias,

que foram para alguns os derradeiros,

que passaram de Estige as águas frias.

Que estes são os remédios verdadeiros

que para a vida estão aparelhados

aos que a querem ter por cavaleiros.

Oh, lavradores bem-aventurados!

Se conhecessem seu contentamento,

como vivem no campo sossegados!

Dá-lhes a justa terra o mantimento,

dá-lhes a fonte clara a água pura,

mungem suas ovelhas cento a cento.

Não vêm o mar irado, a noite escura,

por ir buscar a pedra do Oriente;

não temem o furor da guerra dura.

Vive um com suas árvores contente,

sem lhe quebrar o sono sossegado

o cuidado do ouro reluzente.

Se lhe falta o vestido perfumado,

e da fermosa cor assíria tinto,

e dos torçais atálicos lavrado;

se não tem as delicias de Corinto,

e se de Pário os mármores lhe faltam,

o piropo, a esmeralda, e o jacinto;

se suas casas d'ouro não se esmaltam,

esmalta-se-lhe o campo de mil flores,

onde os cabritos seus, comendo, saltam.

Ali amostra o campo várias cores,

vêm-se os ramos pender co fruto ameno,

ali se afina o canto dos pastores:

ali cantara Títiro e Sileno.

Enfim, por estas partes caminhou

a sã justiça para o Céu sereno.

Ditoso seja aquele que alcançou

poder viver na doce companhia

das mansas ovelhinhas que criou!

Este, bem facilmente alcançaria

as causas naturais de toda a cousa:

como se gera a chuva e neve fria;

os trabalhos do Sol, que não repousa;

e porque nos dá a Lua a luz alheia,

se tolher-nos de Febo os raios ousa;

e como tão depressa o Céu rodeia;

e como um só, os outros traz consigo;

e se é benina ou dura Citereia.

Bem mal pode entender isto que digo

quem há-de andar seguindo o fero Marte,

que traz os olhos sempre em seu perigo.

Porém seja, Senhor, de qualquer arte,

que, posto que a Fortuna possa tanto,

que tão longe de todo o bem me aparte,

não poderá apartar meu duro canto

desta obrigação sua, enquanto a morte

me não entrega ao duro Radamanto,

—se para tristes há tão leda sorte.

XII

Elegia

D. António de Noronha,

estando o Autor na India

Aquela que de amor descomedido

pelo fermoso moço se perdeu

que só por si de amores foi perdido,

despois que a deusa em pedra a converteu

de seu humano gesto verdadeiro,

a última vez só lhe concedeu.

assi meu mal do próprio ser primeiro

outra cousa nenhüa me consente

que este canto que escrevo derradeiro.

E se algüa pouca vida, estando ausente,

me deixa Amor, é porque o pensamento

sinta a perda do bem de estar presente.

Senhor, se vos espanta o sentimento

que tenho em tanto mal, para escrevê-lo

furto este breve tempo a meu tormento.

Porque quem tem poder para sofrê-lo,

sem se acabar a vida co cuidado,

também terá poder para dize-lo.

Nem eu escrevo mal tão costumado,

mas n'alma minha, triste e saudosa,

a saudade escreve, e eu traslado.

Ando gastando a vida trabalhosa,

espalhando a continua saudade

ao longo de ua praia saudoso.

Vejo do mar a instabilidade,

como com seu ruído impetuoso

retumba na maior concavidade.

E com sua branca escuma, furioso,

na terra, a seu pesar, lhe está tomando

lugar onde se estenda, cavernoso.

Ela, como mais fraca, lhe está dando

as côncavas entranhas, onde esteja

suas salgadas ondas espalhando.

A todas estas cousas tenho enveja

tamanha, que não sei determinar-me,

por mais determinado que me veja.

Se quero em tanto mal desesperar-me,

não posso, porque Amor e Saudade,

nem licença me dão para matar-me.

As vezes cuido em mim se a novidade

e estranheza das cousas, co a mudança

se poderão mudar üa vontade.

E com isto afiguro na lembrança

a nova terra, o novo trato humano,

a estrangeira gente e estranha usança.

Subo-me ao monte que Hércules tebano

do altíssimo Calpe dividiu,

dando caminho ao mar Mediterrano.

Dali estou tenteando aonde viu

o pomar das Hespéridas, matando

a serpe que a seu passo resistiu.

Em outra parte estou afigurando

o poderoso Anteu que, derrubado,

mais força se lhe estava acrescentando;

mas do hercúleo braço sojugado, n

o ar deixou a vida, não podendo

da madre terra já ser ajudado.

Nem com isto, enfim, que estou dizendo,

nem com as armas tão continuadas,

de lembranças passadas me defendo.

Todas as cousas vejo remudadas,

porque o tempo ligeiro não consente

que estejam de firmeza acompanhadas.

Vi já que a Primavera, de contente,

de mil cores alegres revestia

o monte, o rio, o campo alegremente.

Vi já das altas aves a harmonia,

que até aos montes duros convidava

a um modo suave de alegria.

Vi já que tudo, enfim, me contentava,

e que, de muito cheio de firmeza,

um mal por mil prazeres não trocava.

Tal me tem a mudança e estranheza

que, se vou pelos campos, a verdura,

parece que se seca, de tristeza.

Mas isto é já costume da ventura;

que os olhos que vivem descontentes,

descontente o prazer se lhe afigura.

Ó graves e insofríveis acidentes

de Fortuna e de Amor que a penitência

tão grave dais aos peitos inocentes!

Não basta exprimentar-me a paciência,

com temores e falsas esperanças,

sem que também me atente o mel de ausência?

Trazeis um brando animo em mudanças,

para que nunca possa ser mudado

de lágrimas, suspiros e lembranças.

E se estiver ao mal acostumado,

também no mal não consentis firmeza,

para que nunca viva descansado.

Vivia eu sossegado na tristeza,

e ali não me faltava um brando engano,

que tirasse os desejos da fraqueza.

E vendo-me enganado estar ufano,

deu à roda Fortuna, e deu comigo

onde de novo choro o novo dano.

Já deve de bastar o que aqui digo

para dar a entender o mais que calo,

a quem já viu tão áspero perigo.

E se nos bravos peitos faz abalo

um peito magoado e descontente,

que obriga a quem o ouve a consolá-lo;

não quero mais senso que largamente,

Senhor, me mandeis novas dessa terra:

ao menos poderei viver contente.

Porque se o duro Fado me desterra,

tanto tempo do bem que o fraco esprito

desampare a prisão onde se encerra,

ao som das negras águas de Cocito,

ao pé dos carregados arvoredos

cantarei o que na alma tenho escrito.

E, por entre esses hórridos penedos,

a quem negou Natura o claro dia,

entre tormentos ásperos e medos,

com a trémula voz, cansada e fria,

celebrarei o gesto claro e puro

que nunca perderei da fantasia.

E o músico de Trácia, já seguro

de perder sua Eurídice, tangendo

me ajudará, ferindo o ar escuro.

As namoradas sombras, revolvendo

memórias do passado, me ouvirão;

e com seu choro, o rio irá crescendo.

Em Salmoneu as penas faltarão,

e das filhas de Belo, juntamente,

de lágrimas os vasos se encherão.

Que se o amor não se perde em vida ausente,

menos se perderá por morte escura;

porque, enfim, a alma vive eternamente,

e amor é afeito d'alma, e sempre dura.

XIII

Elegia

O sulmonense Ovídio, desterrado

na aspereza do Ponto, imaginando

ver-se de seus parentes apartado;

sua cara mulher desamparando,

seus doces filhos, seu contentamento,

de sua pátria os olhos apartando;

não podendo encobrir o sentimento,

aos montes e às águas se queixava

de seu escuro e triste nacimento.

O curso das estrelas contemplava,

e como por sua ordem discorria

o céu, o ar e a terra adonde estava.

Os peixes pelo mar nadando via,

as feras pelo monte, procedendo

como seu natural lhes permitia.

De suas fontes via estar nascendo

os saudosos rios de cristal,

a sua natureza obedecendo.

Assi só, de seu próprio natural

apartado, se via em terra estranha,

a cuja triste dor não acha igual.

Só sua doce Musa o acompanha,

nos versas saudosos que escrevia,

e lágrimas com que ali o campo banha.

Dest'arte me afigura a fantasia a vida

com que vivo, desterrado do bem

que noutro tempo possuia.

Ali contemplo o gosto já passado,

que nunca passará pola memória

de quem o tem na mente debuxado.

Ali vejo a caduca e débil glória

desenganar meu erro, co a mudança

que faz a frágil vida transitória.

Ali me representa esta lembrança

quão pouca culpa tenho; e me entristece

ver sem razão a pena que me alcança.

Que a pena que com causa se padece,

a causa tira o sentimento dela;

mas muito dói a que se não merece.

Quando a roxa manhã, formosa

e bela, abre as portas ao sol, e cai o orvalho,

e torna a seus queixumes filomela;

este cuidado que co sono atalho

em sonhos me parece; que o que a gente

para descanso tem, me dá trabalho.

E despois de acordado, cegamente

(ou, por milhor dizer, desacordado,

que pouco acordo tem um descontente)

dali me vou com passo carregado,

a um outeiro erguido, e ali me assento,

soltando a rédea toda a meu cuidado.

Despois de farto já de meu tormento,

dali estendo os olhos saudosos

à parte aonde tenho o pensamento.

Não vejo senão montes pedregosos;

e os campos sem graça e secos vejo

que já floridos vira e graciosos.

Vejo o puro, suave e brando Tejo,

com as côncovas barcas, que, nadando,

vão pondo em doce efeito seu desejo.

as co brando vento navegando, o

utras cos leves remos, brandamente

as cristalinas águas apartando.

Dali falo co a água, que não sente

com cujo sentimento a alma sai

em lágrimas desfeita claramente.

Ó fugitivas ondas, esperai!

que, pois me não levais em companhia

ao menos estas lágrimas levai,

até que venha aquele alegre dia

que eu vá onde vós is, contente e ledo.

Mas tanto tempo quem o passaria?

Não pode tanto bem chegar tão cedo,

porque primeiro a vida acabará

que se acabe tão áspero degredo.

Mas esta triste morte que virá,

se em tão contrário estado me acabasse,

a alma impaciente adonde irá?

Que, se às portas tartáreas chegasse,

temo que tanto mal pola memória

nem ao passar de Lete lhe passasse.

Que, se a Tântalo e Tício for notória

a pena com que vai que a atormenta,

a pena que lá tem terão por glória.

Esta imaginação me acrescenta

mil mágoas no sentido, porque a vida

de imaginações tristes se sustenta.

Que, pois de todo vive consumido,

porque o mal que possui se resuma,

imagina na glória possuida,

até que a noite eterna me consuma,

ou veja aquele dia desejado,

em que Fortuna faça o que costuma;

—se nela há i mudar um triste estado.

XIV

Elegia

(CAPÍTULO)

Aquele mover d'olhos excelente,

aquele vivo espírito inflamado

do cristalino rosto transparente;

aquele gesto imoto e repousado,

que estando n'alma propriamente escrito,

não pode ser em verso trasladado;

aquele parecer que é infinito

para se compreender de engenho humano,

o qual ofendo em quanto tenho dito,

me inflama o coração dum doce engano,

m'enleva e engrandece a fantasia,

que não vi maior glória que meu dano.

Oh bem-aventurado seja o dia

em que tomei tão doce pensamento,

que de todos os outros me desvia!

E bem-aventurado o sofrimento

que soube ser capaz de tanta pena,

vendo que o foi da causa o entendimento!

Faça-me, quem me mata, o mel que ordena;

trate-me com enganos, desamores;

que então me salva, quando me condena.

E se de tão suaves disfavores

penando vive üa alma consumida,

oh! que doce penar! que doces dores!

E se üa condição endurecida

também me nega a morte por meu dano,

oh! que doce morrer! que doce vida!

E se me mostra um gesto brando e humano,

como que de meu mal culpada se acha,

oh! que doce mentir! que doce engano!

E se em querer-lhe tanto ponho tacha,

mostrando refrear o pensamento,

oh! que doce fingir! que doce cacha!

Assi que ponho já no sofrimento

a parte principal de minha glória,

tomando por milhor todo o tormento.

Se sinto tanto bem só na memória

de vos ver, linda Dama, vencedora,

que quero eu mais que ser vossa a vitória?

Se tanto vossa vista mais namora

quanto eu sou menos para merecer-vos,

que quero eu mais que ter-vos por Senhora ?

Se procede este bem de conhecer-vos

e consiste o vencerem ser vencido,

que quero eu mais, Senhora, que querer-vos?

Se em meu proveito faz qualquer partido,

só; na vista duns olhos tão serenos,

que quero eu mais ganhar que ser perdido?

Se meus baixos espritos de pequenos,

ainda não merecem seu tormento,

que quero eu mais, que o mais não seja menos?

A causa, enfi, m'esforça o sofrimento,

porque, apesar do mal, que me resiste,

de todos os trabalhos me contento;

que a razão faz a pena alegre ou triste.

XV

Elegia

Se quando contemplamos as secretas

Causas, por que o mundo se sustenta,

o revolver dos céus e dos planetas;

e se quando à memória se apresent a

este curso do Sol, que é tão medido

que um ponto só não mingua nem se aumenta;

aquele efeito, tarde conhecido,

da Lua, em ser mudável tão constant e

que minguar e crecer é seu partido;

aquela natureza tão possant e

dos Céus, que tão conforme se contrários

caminham, sem parar um breve instante ;

aqueles movimentos ordinários,

a que responde o tempo, que não mente,

cos efei os da Terra necessáros;

se quando, enfim, revolve sutilmen te

tantas cousas a leve fantasia,

sagaz, escrutadora e diligente;

vê bem, se da razão se não desvia,

o altíssimo Ser, puro e divino,

que tudo pode, manda, move e cria ;

sem fim e sem começo: um ser contino;

um Padre grande, a quem tudo é possível,

por mais árduo que seja ao homem indino;

um saber infinito, incompreensível;

üa verdade que nas cousas anda,

que mora no visível e no invisível.

Esta Potência, enfim, que tudo manda,

esta Causa das causas, revestida

foi desta nossa carne miseranda.

Do amor e da justiça compelida,

polos erros da gente, em mãos da gente

(como se Deus não fosse!) perde a vida.

Ó cristão descuidado e negligente

pondera isto, que digo, repousado,

não passes por aqui tão levemente.

Não, que aquele Deus alto incriado,

Senhor das cousas todas, que fundou

o Céu, a Terra, o fogo e o mar irado,

não do confuso Caos, como cuidou

a falsa teologia e povo escuro,

que nesta só verdade tanto errou;

não dos átomos falsos de Epicuro;

não do largo Oceano, como Tales,

mas só do pensamento casto e puro.

Olha, animal humano, quanto vales,

que por ti este grande Deus padece,

novo modo de morte, novos males.

Olha que o Sol no Olimpo se escurece,

não por oposição doutro planeta,

mas só porque virtude lhe falece.

Não vês que a grande máquina inquieta

do mundo se desfaz toda em tristeza,

e não por natural causa secreta?

Não vês como se perde a natureza?

O ar se turba? o mar, batendo, geme,

desfazendo das pedras a dureza?

Não vês que os montes caem? a terra treme?

E que até na remota e grande Atenas,

o sábio Dionísio sente e teme?

O sumo Deus! tu mesmo te condenas

pelo mal em que eu só sou tão culpado,

a Amanhas afrontas, tantas penas.

Por mim, Senhor, no mundo reputado

por falso e por quebrantados da lei

a fama de ti se põe do meu pecado.

Eu, Senhor, sou ladrão; tu, justo Rei;

eu, só furtei; tu, com ladrões padeces;

a pena a-ti se dá do que eu pequei.

Eu, servo sem valor; tu, sumo preço,

em preço vil te pões, por me tirares

do cativeiro eterno, que mereço.

Eu, por perder-te; e tu, por me ganhares,

te dás aos homens baixos, que te vendem,

só para os homens presos resgatares.

A ti, que as almas soltas, a ti prendem;

a ti, sumo Juiz, ante juízes te acusam,

polo error dos que te ofendem.

Chamem-te malfeitor, não contradizes;

sendo tu dos Profetas a certeza,

dizem que quem te fere profetizes.

Rim-se de ti; tu choras a crueza

que sobre eles virá. A gente dura,

por quem tu vens ao mundo, te despreza.

O teu rosto, de cuja fermosura

se veste o Céu e o Sol resplandecente,

diante de que muda está a Natura,

com cruas bofetadas da vil gente,

de precioso sangue está banhado,

cuspido, arrepelado cruelmente.

Aquele corpo tenro e delicado,

sobre todos os Santos sacrossanto,

de açoutes rigorosos flagelado;

despois, coberto mal de um pobre manto,

que se pegava às carnes magoadas,

para dobrar-lhe as dores outro tanto.

Magoavam-no as chagas não curadas,

um tormento causando-lhe, excessivo,

ao despir pelas mãos cruéis e iradas.

As santíssimas barbas de Deus vivo,

de resplandor ornadas lhe arrancavam,

para desempenhar Adão cativo.

Com cordas pelas ruas o levavam,

levando sobre os ombros o trofeu

das vitórias que as almas alcançavam.

O tu que passas, homem Cireneu,

ajuda um pouco este Homem verdadeiro,

que agora como humano enfraqueceu!

Olha que o corpo, aflito do marteiro

e dos longos jejuns debilitado,

não pode já co peso do madeiro.

Oh não enfraqueçais, Deus encarnado!

Essas quedas, que tanto vos magoam,

suportai, Cavaleiro sublimado!

Que aquelas altas vozes que lá soam,

Padres são que estão no Limbo escuro,

que já de louro e palma vos coroam.

Todos vos bradam, que subais ao muro

da cidade infernal, e que arvoreis

em cima essa bandeira, mui seguro.

Oh Santos Padres, não vos apresseis,

que muito mais a Deus que a vós custaram

essas duras prisões em que jazeis!

quelas mãos, que o mundo edificaram,

aqueles pés, que pisam as estrelas,

com duríssimos pregos se encravaram.

Mas qual será a pessoa que as querelas

da angustiada Virgem contemplasse

que não se mova à dor e à mágoa delas?

E que dos olhos seus não estilasse

tanta cópia de lágrimas ardentes

que carreiras no rosto assinalasse?

Oh quem lhe vira os olhos refulgentes

desfazendo-se em lágrimas, regando

aquelas belas faces excelentes!

Quem a vira cos gritos ir tocando

as estrelas, a quem responde o Céu,

cos acentos dos Anjos retumbando!

Quem vira quando o claro rosto ergueu

a ver o Filho, que na Cruz pendia,

donde a nossa saúde descendeu!

Que mágoas tão chorosas que diria!

Que palavras tão míseras e tristes

para o Céu, para a gente espalharia!

Pois que seria, Virgem, quando vistes

com fel nojoso e com vinagre amaro

matar a sede ao Filho que paristes?

Não era este o licor suave e claro

que, para o confortar, então daríeis

a quem vos era, mais que a vida, caro.

Como, Virgem Senhora, não corríeis

a dar as tetas puras ao Cordeiro

que padecer na Cruz com sede víeis?

Não só era esse, Senhora, o verdadeiro

poto, que vosso Filho desejava

morrendo polo mundo num madeiro;

mas [era] a salvação, que ali ganhava

para o mísero Adão, que ali bebia

na fonte, que do peito lhe manava.

Pois, ó pura e Santíssima Maria,

que, enfim, sentistes esta magoa, quanto

a gravidade dela o requeria;

dessa Fonte sagrada e peito santo

me alcançai üa gata, com que lave

a culpa, que me agrava e pesa tanto.

Do licor salutífero e suave

me abrangei, com que mate a sede dura

deste mundo tão cego, torpe e grave.

Assi, Senhora, toda a criatura

que vive e viverá, que não conhece

a Lei do vosso Filho, santa e pura;

o falsíssimo herege, que carece

da graça, e com danado e falso esprito

perturba a Santa Igreja, que florece;

O povo pertinaz, no antigo rito,

que só o desterro seu, que tanto dura,

lhe diz que é pena igual ao seu delito;

o torpe Ismaelita, que mistura

as leis, e com preceitos viciosos

na terra estende a seita falsa, impura;

os idólatras maus, supersticiosos,

vários de opiniões e de costume,

levados de conceitos fabulosos;

as mais remotas gentes, onde o lume

da nossa fé não chega, nem que tenham

religião algüa se presume;

assi todos, enfim, Senhora, venham

confessar um só Deus crucificado,

e por nenhum respeito se detenham.

Mas de todos o vicio já passado,

o Seu nome co vosso, neste dia

seja por todo mundo celebrado

E respondam os Céus: JESUS, MARIA.

XVI

Elegia

À morte de D. Miguel de Meneses,

filho de D. Henrique de Meneses,

governador da casa do Cível, que

morreu na Índia

Que novas tristes são, que novo dano,

que mal inopinado incerto dano,

tingindo de temor o vulto humano?

Que vejo as praias húmidas de Goa

ferver de gente atónita e torvada

do rumor que de boca em boca soa.

É morto D. Miguel (ah! crua espada!)

e parte da lustrosa companhia

que se embarcou na alegre e triste armada;

de espingarda ardente e lança fria

passado pelo torpe e inico braço

que nossas altas famas injuria.

Não lhe valeu rodela ou peito de aço,

nem animo de Avós altos herdado,

com que se defendeu tamanho espaço;

não ter-se em derredor todo cercado

de corpos de inimigos, que exalavam

a negra alma do corpo traspassado;

não com palavras fortes, que voavam

a animar os incertos companheiros,

que fortes caem e tímidos viravam.

Mas já postos nos termos derradeiros,

passados por mil partes e cortados

os membros, só do nobre esforço inteiros,

os olhos, de furor acompanhados,

que inda na morte as vidas amedrontam

dos fracos inimigos espantados,

postos no Céu, parece que apresentam

a pura alma à suprema Eternidade,

por quem os Céus e Terra se sustentam.

E, pedindo dos erros que na idade

verde e quase inocente já fazia,

perdão à pia e justa Majestade,

as rosas apartou da nove fria;

e, como flama fraca, a quem falece

seu húmido licor, de que vivia,

nas mãos do Coro Angélico, que dece,

se entrega; e vai gozar da vida eterna

que com tão justa morte se merece.

Vai-te, alma, em paz à glória sempiterna!

Vai, que quem pela Lei santa e divina

morre, a dá a Deus, que os Céus governa.

Quando pela razão devida e dina

do Rei, da Pátria, e honra dos passados

sacrificar a vida nos ensina,

nos assentos de estrelas esmaltados

lhe dá lugar a altíssima Clemência

entre os heróis à glória destinados.

Mas, ah! quem sofrerá perpétua ausência

e tão caro Senhor, tão fido amigo!

Quem porá contra mágoas resistência?

Aquele animo grande, que do antigo

de seus maiores era alto retrato,

desprezador de todo o vil perigo;

misturado com doce e brando trato

cos iguais Juntamente' e cos menores

a todos amoroso, a todos grato;

aquele esprito nobre, onde maiores

esperanças cresciam, se o tão duro

caso, as não cortara em novas flores;

em verde idade, siso já maduro,

alegre riso, ledo e aberto peito, e

m repousado espírito seguro;

não soberbo e por arte contrafeito,

mas todo puro e, enfim, da natureza

mais para o Céu que para a terra feito;

também do corpo a humana gentileza

o bem talhado gesto, que mostrava

forças iguais e manhas com destreza;

a cor, que o fresco rosto matizava,

as rosas, flores novas de alegria,

com que o Verão as faces adornava;

tudo os fios da Morte, que desvia

dos propósitos nossos e salteia,

cortaram cruamente, quando abria.

Deixa pois tu, fermosa Citereia,

do gentil filho e neto de Ciniras

o pranto pela morte horrenda e feia.

E tu, dourado Apolo, que suspiras

pelo crespo Hiacinto, moço caro,

por quem a clara luz ao mundo tiras;

vinde e chorai um moço ao mundo raro,

não de ferino dente vulnerado,

nem de animal algum que haja reparo,

mas só do fero imigo traspassado;

que, sem dúvida incerta ou pio medo,

a vida pôs nas mãos de Marte irado.

Está tu também, moço Idálio, quedo,

deixa de dar o venenoso mel a beber

pelos olhos triste e ledo,

que já os fermosos olhos de Miguel

cobertos são do negro e escuro manto

da lei geral, a todos mais cruel.

E vós, filhas de Téspis, que do canto

podeis bem mitigar a lei imensa

dos irmãos generosos e alto pranto,

não consintais que façam larga ofensa

à grande integridade, que, se devem,

não são águas do dano recompensa.

Que já, diante, os olhos me descrevem,

quando as bocas da fama voadora

ao pátrio e claro Tejo as novas levem,

a profunda tristeza, que em üa hora

tal posse tomará dos altos peitos,

que a razão quase quase deite fora.

Ali, de dor, os corações sujeitos

pesadas lhe serão consolações

e pesados exemplos e respeitos.

Pequena é certo a dor, que com razões

se pôde refrear, nem com memória

de outros antigos e integros varões.

Mas porém se igualais a vida à glória,

meu grande Dom Filipe, e pretendeis d

eixar de vossas obras larga história,

eu não vos admoesto, que estreiteis

o coração na estóica disciplina,

onde livre de efeitos vos mostreis,

que mal natura nossa determina

medo, esperanças, dores e alegria,

como o Cínico velho nos ensina.

lmanidade estúpida (diria

o sulmonense canto) e vil rudeza

é não sentir afeitos, que a alma cria.

Porém, se não sentir nada é bruteza,

e se paixão de vida se consente,

também o sentir muito é já fraqueza.

Se dói a opinião do mal presente,

e medo e opinião do mal futuro,

são, enfim, tudo opiniões da gente.

O verdadeiro sábio está seguro

de leves alegrias e de espanto de dor,

que turba da alma o licor puro.

Inda antes que aconteça o riso e o pranto

os tem já no sentido meditados,

livre está de alvoroço e de quebranto.

E como de alta torre vê cuidados

humanos vãos, e aquela indiferença

de ambições e cobiças e Recados;

todo caso acha nele só presença,

que, como as febres são da carne humana,

assi os afeitos d'alma são doença.

Se esta doutrina credes, que é profana,

ponde os olhos na nossa, que é divina,

e sobre todas santa e soberana.

Vereis Arão, que não se contamina

sobre os montes seus, que defendida

a dor lhe foi da santa disciplina.

Não chega a ver parentes, que da vida

partidos são, que n'alma a Deus agrada

que nenhüa aflição do mundo impida.

Nós somos geração a Deus dicada

sacerdotal, que em tempo nenhum deve

do gentílico culto ser tocada.

Se dos antigos Padres já se escreve,

que, chorando, aos mortos enterraram

com dor e pranto público, e não leve,

era porque ainda as portas não quebraram

do Céu sereno aquelas mãos cravadas

que os antigos contágios alimparam.

E também por ornar as sempre usadas

pompas do funeral enterramento

com públicas exéquias costumadas.

Esta alta fortaleza e sofrimento

como a forte Varão vos é devido,

e como lei do santo documento.

Bem conheço que o corpo assi perdido,

que do sepulcro nobre aqui carece

será de aves ou feras consumido.

Mortos os Espartanos valerosos,

da fera multidão fazendo estremos

tais epitáfios tinham gloriosos:

Dirás, hóspede, tu, que aqui jazemos

passado do inimigo fero, enqnanto

às santas leis da Pátria obedecemos.

Fugindo os Persas vão com frio espanto,

mas acham as mulheres no caminho

amostrando-lhe o ventre sem ter manto:

—Pois fugis do perigo, que é vizinho,

fracos! vinde esconder-vos (lhe diziam)

outra vez no materno, escuro ninho.

Vedes quais com mais glória ficariam

se aqueles que enfim morreram pelo Estado,

se os outros, que as mulheres injuriam.

Mas tu, claro Miguel! que já acordado

deste sonho tão breve, estás naquela

torre do Céu, seguro e repousado,

onde, com Deus unida a forte e bela

alma, com teus maiores reluzindo,

por cada chaga tens üa clara estrela;

os pés o cristalino Céu medindo,

pisando essas lucíferas Esferas,

já da terrena os olhos encobrindo;

agora um curso e outro consideras,

agora a vaidade dos mortais,

que tu tam bem passaras, se viveras.

Mais a pena cantara, a poder mais.

XVII

Elegia

Dom Leonis Pereira sobre o livro

e Peão de Magalhães lhe of ereceu do

descobrimento da terra de Santa Cruz

Despois que Magalhães teve tecida

a breve história sua, que ilustrasse

a terra Santa Cruz, pouco sabida,

imaginando a quem a dedicasse,

ou com cujo favor defenderia seu livro,

de algum zoilo que ladrasse;

tendo nisto ocupada a fantasia,

lhe sobreveio um sono repousado,

antes que o Sol abrisse o claro dia.

Em sonhos lhe aparece, todo armado,

Marte, brandindo a lança furiosa,

com que fez, quem o viu, todo enfiado,

dizendo, em vez pesada e temerosa:

Não é justo que a outrem se ofereça

nenhüa obra que possa ser famosa,

senão a quem por armas resplandeça

no mundo todo com tal nome e fama

que louvor imortal sempre mereça.

Isto assi dito, Apolo, que da flama

celeste guia os carros, de outra parte

se lhe apresenta, e por seu nome o chama,

dizendo:—Magalhães, posto que Marte

com seu terror te espante, todavia

comigo deves só aconselhar-te.

Um Varão, sapiente, em quem Talia

pôs seus tesouros e eu minha ciência,

defender tuas obras poderia.

E justo que a escritura na prudência

ache só defensão, porque a dureza

das armas é contrária da eloquência.

Assi disse; e, tocando com destreza

a cítara dourada, começou

de mitigar de Marte a fortaleza.

Mas Mercúrio, que sempre costumou

a despartir porfias duvidosas,

co caduceu na mão, que sempre usou,

determina compor as perigosas

Opiniões aos deuses inimigos,

com razões boas, justas e amorosas;

e disse:—Bem sabemos dos antigos

heróis e dos modernos, que provaram

de Belona os gravíssimos perigos,

que também muitas vezes ajuntaram

às armas eloquência, porque as Musas

mil capitães na guerra acompanharam.

Nunca Alexandre ou César, nas confusas

guerras deixaram o estudo em breve espaço,

nem armas da ciência são escusas.

Nüa mão livros, noutra ferro e aço,

a üa rege e ensina, a outra fere;

mais co saber se vence que co braço.

Pois, logo, Varão grande, se requere,

que com teus dões, Apolo, ilustre seja,

e de ti, Marte, palma e glória espere.

Este vos darei eu, em quem se veja

saber e esforço no sereno peito,

que é Dom Leonis, que faz ao mundo enveja.

Deste as Irmãs em vendo o bom sujeito,

todas nove nos braços o tomaram,

criando-o co seu leite no seu leito.

As artes e ciência lhe ensinaram,

inclinação divina lhe influiram,

as virtudes morais, que o logo ornaram.

Daqui os exercícios o seguiram,

das armas no Oriente, onde primeiro

um soldado gentil instituiram.

Ali tais provas fez de cavaleiro,

que de cristão magnânimo e seguro,

a si mesmo venceu por derradeiro.

Despois, já capitão forte e maduro,

governando toda Áurea Quersoneso,

lhe defendeu co braço o débil muro;

porque vindo a cercá-la todo o peso

do poder dos Achéns, que se sustenta

do sangue alheio, em fúria todo aceso;

este só, que a ti, Marte, representa,

o castigou de sorte, que o vencido

de ter quem fique vivo se contenta.

Pois tanto que o grão Reino defendido

deixou segunda vez com maior glória,

para o ir governar foi elegido.

E não perdendo ainda da memória,

os amigos, 0 seu governo brando,

os imigos, o dano da vitória;

uns, com amor intrínseco, esperando

estão por ele, e os outros, congelados,

o vão, com temor frio, receando.

Pois vede se serão desbaratados

de todo por seu braço, se tornasse,

e dos mares da Índia degradados;

porque é justo que nunca lhe negasse

o conselho de Olimpo alto e subido

favor e ajuda, com que pelejasse.

Pois aqui certo está bem dirigido

de Magalhães o livro, este só deve

de ser de vós, ó deuses, escolhido.

isto Mercúrio disse, e logo em breve

se conformaram nisto Apolo e Marte,

e voou juntamente o sono leve.

Acorda Magalhães, e já se parte

a vos oferecer, Senhor famoso,

tudo o que nele pôs ciência e arte.

Tem claro estilo, engenho curioso

para poder de vós ser recebido,

com mão benina de animo amoroso.

Porque só de não ser favorecido

um claro esprito, fica baixo e escuro:

pois seja ele convosco defendido

como o foi de Malaca o fraco muro.

FIM