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domingo, 12 de julho de 2020

"a gente não perde quem vive na gente!"

"Achei que você fosse mais escurinho".

O "escurinho" na frase foi tão longe na minha cabeça como não esperava e só porque não ouvi "moreninho" (que eu nunca vi como pejorativo) que eu me toquei...

O sistema que levou alguém a dizer uma coisa tão "esquisita", até esquizofrênica (no sentido de sem conexão nenhuma com a vida real) ou a se preocupar em formar uma imagem prévia sobre a tonalidade da pele de alguém, eu ainda não aceito bem...

Aqui a ascendência é de povos escravizados (isso foi feito deles, não é quem eles são) e originários indígenas...

A avó, que não esquecia da origem dela, e me contava tantas histórias que eu já nem lembro todas...

Hoje relembrando, dá pra dizer que eram histórias que frequentemente envolviam não ter o que comer. Eu ouvia aquilo sendo criança, então era limpo, um ato de escuta ativa, era: "caçar passarinho", "comer fruta no pé", "pescar no rio", "nadar", "fazer pipoca na fogueira", "correr atrás de galinha pra ver onde é que ela botou", "cuidar de irmãos aprontando mil", "benzedeiras dando indicações medicas", "plantação de mandioca", "dar água a viajantes"...

Falando assim, me sinto mais como o guardião de um grande tesouro... Talvez ela contasse essas histórias pra que eu as lembrasse e as contasse também. Mas não poderia, não saberia contar... Reproduzir a magia toda envolvida? Não dá...

Cada história que ela contava embalava no centro uma moral caipira, uma lição que se você jogasse na terra, brotava. Riqueza simbólica digna de estudioso...
[Se ela me visse hoje... "Biomime o quê, Dio?", "Simbologia, Dio?" - como só ela me chamava, geralmente pedindo que eu pegasse algo pra ela... "Oooo Dio, pega pra vó..."]

A memória e a saudade dela que é muita, vice? E dói por demais, não me deixariam mentir...

Os traços, bem característicos quando você olha pra eles, são só pra não me deixar esquecer...

Eu me preocupei 0% com a caracterização do IBGE sobre etnia, cor da pele, etc... e talvez só porque o tema está sendo tão discutido que isso tenha ido tão longe pra mim.

Daí que se eu me calasse eu estaria desrespeitando pessoas que eu amo:
Sim, eu poderia ter nascido mais "escurinho" e daí que em qualquer caso isso não muda NA-DA. Só reforça minha honra e reverência aos povos originários indígenas e aos escravizados como precedentes e maiores.

Á cada gota de sangue, suor e lágrima que não será esquecida e que compõe a pavimentação das ruas de asfalto e de concreto, eu honro;
Á todo esforço que fizeram para que o gene, cultura e raça não fossem esquecidos, eu honro.
Á sua força de luta contra as adversidades todas, eu honro.
Como meus ancestrais vocês ainda vivem, eu os reconheço como parte de mim e honro. Nunca serão esquecidos, Sempre exaltados, parte de mim... Talvez a melhor.

E por fim, pra pessoa do "escurinho" que me provocou lembrar de tudo isso e ir dormir hoje com o coração mais quentinho, quase com o abraço da vó que eu amo pra sempre do tamanho da saudade que eu mantenho: gratidão.

[Poeta Eterno]³