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terça-feira, 17 de abril de 2007

MEMORIAL DE UM PASSAGEIRO DE BONDE - Amadeu Amaral

MEMORIAL DE UM PASSAGEIRO DE BONDE - Amadeu Amaral

PREFÁCIO

O meu amigo João Felício Trancoso, conceituado, chefe de seção, prometeu um dia, em troca já não sei de que serviço, que me faria um presente à minha escolha. Resisti, como cumpria, à promessa de outra compensação que não fosse a da sua velha e sempre nova amizade.

Mas Trancoso é obstinado e não me deixou sossegar. Exigiu sempre que eu lhe dissesse o que preferia - se a coleção das obras de Jorge Ohnet (a sua maior predileção em literatura), se uma cigarreira de prata, se um guarda-chuva de seda.

Como eu teimasse em recusar, mandou-me o guarda-chuva e, não satisfeito, pouco depois me veio ameaçar com as obras de Jorge Ohnet. Urgia romper o cerco.

Ora, eu sabia que Trancoso, muito calado, rascunhava um diário das suas impressões de viagem. Das viagens que há vinte anos faz, como bom empregado público, de casa para a repartição e da repartição para casa. Tomei-lhe um punhado de folhas, li-o, e disse-lhe: "Este é o presente que exijo".

Tentou repontar, quis sofismar o contrato: venci-o à força de senso jurídico e de severas admoestações.

Nenhuma lembrança do velho amigo me poderia ser mais grata do que esses papéis em que lançou uma verdadeira porção de si mesmo. Verdadeira, porque Felício não conhece a arte dos desdobramentos literários da personalidade. Nota no memorial as espontâneas modificações de sua alma ao contato das coisas e dos homens. Não edifica a sua obra: segrega-a. Não a escreve para verificar ou provar que também é capaz de fazer literaturas, mas "para ter a sensação de que se expurgou de uma inevitável porção de tolices".

Assim, o seu ponto de vista de escrevedor é inteiramente oposto ao dominante: outros constróem, com esforço, uma personalidade exterior, feita de escritos, na qual põem toda a sua complacência e o melhor das suas esperanças; este deita fora as suas idéias, como um refugo, para conservar o equilíbrio, a saúde e a leveza do seu ser interior e inviolável - o único que vale a pena de ser vivido e cultivado, (mesmo porque não se lhe pode sair da casca).

Demais, gosta de escrever "para ter a impressão, ao reler-se, de ser uma alma que vai vivendo, apesar de reduzida à mínima expressão social de empregado público e viajante de bonde." E acrescenta: "A lesma, na sua existência branca, só deve ter uma tal ou qual sensação de vida quando olha para o rasto prateado que vai deixando pela parede."

Contudo, os mais sonsos têm o seu sistema de idéias e Trancoso não escapa à necessidade. O seu ponto de vista autoral, atrás indicado, já representa uma posição filosófica diante do mundo e da sociedade. Há mais: o nosso memorialista visivelmente gosta dos casos e coisas mais ordinários, mais mesquinhos, mais insignificantes: esses, de preferência, regista e comenta. É que pensa, com Chamfort, que, "nas grandes coisas, os homens se mostram como lhes é conveniente, mas nas pequenas se revelam tais quais são". Daí o sabor das pequenas coisas, que são na verdade as realmente grandes, porque formam os alicerces e as armaduras de tudo. O sabor? Antes a amargura

Entretanto, Trancoso não é um cético nem um pessimista. Homem são na sua humana enfermidade e forte na sua complexão mediana, conhece o valor higiênico da variedade de exercícios e a conveniência de a gente se abandonar um pouco à ondulação natural do sentimento e das intuições ordinárias. No fundo, talvez, crente, - crente do bom senso da inteligência e do coração, qualidade ativa, inimiga nata do senso comum, "consagração social e passiva de toda a sorte de preconceitos mendazes e de pré-sentimentos daninhos".

Enfim, aqui tem o leitor as impressões de viagem de Felício Trancoso. Temo que este prefácio o prepare mal para avaliar a verdadeira índole dessas páginas despreocupadas. A eterna impertinência dos prefácios! As coisas da vida surgem por si mesmas, sem prefácios nem explicações, e no entanto conseguem perfeitamente o fim de todas as coisas: passar. Pois façamos de contas que este prefácio já passou. Não existe.

L'áme respire avec des paroles

UNAMUNO, L'Agonie du Christianisme



O BONDE

Quando ia tomar o meu bonde, hoje pela manhã, o meu vizinho Dr. Viegas passou no seu Dodge e atirou-me. num gesto, a fisga de um convite. Hesitei um pouco, e afinal optei pelo bonde. O Dr. Viegas partiu.

Entrei no carro elétrico, conquistei um lugar no último banco, e só depois que me vi instalado e refestelado é que me ocorreu dirigir a mim próprio esta interpelação: "Por que será que recusei o automóvel? Porque preferi o bonde?" A resposta não foi imediata nem rápida; veio porém, e aqui a reduzo a conserva:

"Preferi o bonde porque não tenho pressa. E não quero ter pressa, porque estou contente, e o contentamento em mim propende naturalmente à lenteza das degustações silenciosas e chuchurreadas. Trago a alma numa pacificação pessoal e cantante, num desses estados de harmonia orgânica que crescem de dentro para fora, como uma florescência, sem se saber porque, e por isso mesmo são mais doces. Para fruir esta eufórica disposição, preciso de estar só. E a melhor maneira de estar só é ainda achar-se no meio de uma quantidade grande de estranhos. Sentimo-nos, assim, não apenas insulados, mas diversos. Duplo círculo de segregação. Solidariedade enfestada. - E eis aí a única forma de solidariedade perfeita que os homens até hoje inventaram: a união de todos para deixar cada um entrincheirado em si mesmo, como uma pedra.

Depois, o automóvel me é antipático. A rapidez posta a serviço dos que não têm que fazer! A faculdade de deslocamento veloz em posse dos que menos razão teriam para correr! Assim, os relógios de bolso foram nos seus princípios um luxo de ricos, depois de apatacados; adorno e brinquedo dos que tinham mais tempo ao seu dispor. Velha história da maioria dos inventos: charadas e curiosidades de mecânica para pessoas lunáticas ou desocupadas, acabam impondo-se a todo o mundo. Não os determina a necessidade: eles é que a suscitam. Os que trabalham deveras, os que suam e gemem na tarefa de todos os dias são os que precisariam de ter automóvel, para poupar minutos, para espremer uma gota de vida e de sangue em cada segundo. Mas esses não o podem adquirir e manter; podem quando muito sonhar em possuí-lo um dia - quando já não seja necessário.

Assim se vive perpetuamente, em busca do supérfluo; por ele nos batemos e sacrificamos. O supérfluo é-nos tão indispensável como para certos doentes o ar das montanhas ou os banhos de mar. Nele pomos as nossas esperanças de saúde e rejuvenescimento. A vida é uma carreira louca em pós de automóveis relampejantes. Poucos os agarram. E os que os agarram, apenas aboletados mandam tocar mais depressa para alcançar um outro que faiscou ao longe. E toda esta canseira se resolve numa carreira desesperada empós do último carro, aquele que tem douradas e negruras.

O automóvel é o veículo dos que fogem a si mesmos. Qual a causa dessa febre de pressa? Vaidade material, exteriorização do centro de gravidade psíquica. Depois, gosto puro da velocidade, pendor infantil reencontrado na idade madura - prazer de um tropel de sensações, dominado pela sensação central e capitosa de sermos uma vertigem que voa através do delírio das coisas. Tudo maneiras novas de embriaguez. O automóvel vem da mesma prateleira que o whisky, o tango e a morfina. Tudo maneiras de uma pessoa esquivar o olho antipático e fulgurante do seu Eu profundo, o consciente, o rememorador, o censurante, o meditativo, que desperta e fala quando abandonamos o corpo e os sentidos, e os braços descansam, e o animal estatela como um mecanismo cuja corda se acabou.

O automóvel é o veículo dos que não amam, apenas desfloram libertinamente a beleza das coisas. - A melhor atenção do viajante, por essas estradas, se concentra na máquina. "Como se porta? Quanto anda? Quantos quilômetros andou? Como funcionam os freios? Bastará a provisão de gasolina? Onde encontrar gasolina aos litros? Olha um que lá vem como um louco! Vamos a uma chispada! Cuidado com essa volta... Diabo, lá se foi um pneu!... - Assim, conjugado ao passageiro por todas as fibras da atenção e da vontade, o auto é como um corpo doente que uma triste criatura tem de conduzir, absorvida nele, por entre esbarros e escorregões. É um prolongamento imediato do Eu material, e pois um reforço tremendo da múltipla escravidão que amarra a endolorece o espírito. O ideal do filósofo é despojar-se de tudo quanto nos limita e nos pesa: o ideal comum é encarapitar novas cargas e novos prolongamentos, novas estruturas postiças à personalidade natural.

Os homens na verdade amam todo gênero de escravidão, contanto que lhe ponham um nome aprazível. Dirigir um automóvel é "dirigir" alguma coisa. (Veja-se a tradicional imponência dos indivíduos atrelados a uma boléia). Chamam a isso dominar a matéria cega e a força bruta. Dominar a matéria e a força, quem o faz é o inventor que labuta no gabinete e no laboratório. Os outros apenas reproduzem a história do mágico aprendiz. - Chamam a isso fazer esporte, cooperar na obra de não sei que vago progresso. E com estas idéias se alegram. Fáceis de contentar, os homens. É pena que os forçados das galés antigas não tenham tido a consolação de algum pensamento nesse estilo, quando se dobravam e desdobravam amarrados à mecânica extenuante do remo!

Sim, automobilistas há que têm tempo para ver; que colecionam sensações; que trazem braçadas de impressões da natureza, dos povoados, das caras e das almas entrevistas. Impressões talvez nítidas, mas fragmentárias e superficiais, como fotografias. A objetividade chata e unilateral do instantâneo. Nada das penetrações, das tatilidades envolventes, das sondagens reveladoras, das adivinhações enlevadas, das apreensões íntimas, concretas, totalizantes, de uma alma em lento contato, em luta e em núpcias com a virgindade fugitiva do real. A imparcialidade química, a mentirosa, a estúpida imparcialidade da fotografia.

Enquanto que o bonde... Ah! o bonde é outra história. Nem tão vagaroso que dê sono, nem tão veloz que dê vertigem, tem a suprema vantagem de ser seguro e repousante. "Repousante" quer dizer que nos deixa o descanso necessário para continuarmos em lida e em briga conosco mesmos. Quer dizer que no bonde não intervém a força centrífuga que nos estraçalha e nos projeta contra as coisas ambientes, na alucinação das corridas elásticas e esfuziantes. Em vez de domar a pulso umas engenhocas pomposas e traiçoeiras, acho mais razoável e mais agradável degustar as aquisições já provadas e certas do gênio inventivo, das quais nos podemos servir sem lhes dar maior atenção. E que formidáveis aquisições, já docemente incorporadas aos nossos modos de ser! Por exemplo, este meu Faber n.0 2, macio, leve e corrente como uma agulha sensibilíssima adaptada a um aparelho psicográfico; este papel em que escrevo, liso e lúcido como porcelana, claro como a cordialidade, alvo como a inocência, receptivo como um espelho; este humilde capote de lã que molemente me escorrega dos ombros à medida que trabalho, brando como um carinho piedoso que discretamente se retira; este meu relógio paciente e incansável, que há seis anos tiquetaqueia todos os minutos da minha vida, já embaciado, já com os relevos do tempo meio delidos, já com um ponteiro meio torto, já com o vidro meio opaco, mas con moto dentro firme e obstinado no seu trabalho, sempre a contar lá consigo, na sua vizinha martelada e tilintante, a medida perpétua de todas as monotonias essenciais deste mundo tumultuoso.

O bonde permite que eu me concentre em mim mesmo. Não vale isso grande coisa, mas sempre é um meio de eu me sentir viver enquanto vivo. O que não é possível no automóvel à solta, onde a nossa alma se vai espadanando pelos caminhos como a água de uma vasilha sacolejada.

O bonde permite-me ver de perto, viver o bicho-homem na substancial realidade dos seus gestos inadvertidos. E esse bichinho (verme da terra, lá diz o Evangelho) é afinal só o que há de interessante no mundo.

As próprias estrelas são uma poeira estúpida, na sua mudez mortal e na sua mecânica fria. De onde lhes vem a magnitude e a beleza? Da pequenez e da miséria desse bichinho que pensa e que imagina, entre as minhocas e os sapos. A sua pequenez e a miséria o fazem visionário de esplendores.

Deliciae meae esse cum filiis hominum.

O bonde é uma galeria inesgotável de exemplares desse verme sempre igual e sempre vário; uma exposição permanente, renovada a cada instante, de tipos, de esboços, de caricaturas, rica e múltipla como a vida, sugestiva como deve ser a antecâmara do Purgatório. Se as almas soassem, o bonde seria como um poderoso jazz-band sobre rodas em que os uivos, os berros, os soluços, as casquinadas interiores se despenhariam em cataratas de dissonâncias - sem perder o fio às grandes linhas monótonas da composição.

"Ah! o bonde, sim..."

Depois de me dar esta resposta, achei que era um pouco longa demais para explicar uma resolução tomada em dois segundos. Mas não sei fazê-lo por outro modo. Sei apenas que é assim, ordinariamente, com todas as nossas resoluções. Elas pressupõem longos trabalhos de raciocínio e reflexão; na verdade, esses trabalhos vêm depois, e só servem, quando muito, para as seguintes edições do mesmo ato.

No cabo de tudo, se eu ainda dispusesse de dinheiro sobrante, compraria um automóvel, ou uma dessas máquinas que mais se assemelham automóvel.

UM SONETO

Saí, hoje, de casa maquinando um soneto. Não foi culpa minha, mas obra do acaso. Lendo um jornal, depara-se-me, perdido no entrecho de uma notícia ordinária, em que se narrava a prisão de uma negrinha gatuna, este retalho de frase: "Toda a ilusão da triste Gabriela..." - Magia do número! Não foi sem razão, ó sombra venerável de Pitágoras! que a pressentiste por tudo nas esferas como nas almas. Repeti duas, três, dez vezes esse pedaço de frase vulgar, que é um verso inteiro e excitante. Gabriela alvejou-se-me e transfigurou-se-me logo na remota imagem de uma linda pessoa que de repente se vira nua de toda ilusão, nua como lady Godiva montada num asno, em meio da praça. Comecei a compor... não, começou a compor-se em mim um soneto:

Já não tens ilusão, ó Gabriela!
Nega-ta o amor, essa comédia triste.
Nega-ta a vida. E em tudo quanto existe,
O espinho do real se te revela.

Subi para o bonde a escandir mentalmente esses decassílabos, que para ser sincero comigo mesmo, não me pareceram maravilhosos. Mas alentava-me a esperança de que pudessem ir melhorando do meio para o fim do soneto. - O que me apepinava um bocado era que as rimas aproveitáveis não se deixavam pegar como frangos de pés amarrados. A memória, afeita a servir-me os torresmos do vocabulário trivial, só me deparava coisas como fivela, moela, espinhela, chiste, alpiste, que não se coadunavam à pura nobreza da inspiração. Encolhi-me, cerrei as pálpebras e atirei-me à caça de boas rimas, exercício muito útil, para refrescar as idéias e especialmente indicado como passatempo higiênico e divertido para homens atarefados, nas horas vagas.

Ia engolfado nesse labor - Cellini do verso! - quando senti que uns dedos me bicavam no ombro. Voltei-me, era o meu amigo Fabiano Alves, prático de farmácia meu vizinho. Bom homem, mas confiado, e ainda com a particularidade esquisita de se achar sempre numa temperatura espiritual completamente diversa da minha.

- "Está calculando?" indagou.

Tive ganas de lhe perguntar que conta lhe fazia que eu estivesse calculando ou voando muito acima do lodaçal do mundo, onde patejam os boticários sem alma.

- "Vem tão concentrado, mexendo com os lábios."

- "Cá umas coisas."

Fabiano entrou imediatamente a explicar que era tapadíssimo em questões de cálculo. Decididamente, não dava para essa especialidade. De uma feita, propuseram-lhe um problema, no clube de Periquitos, sua terra natal: "Um pássaro faz sete voltas em redor de uma torre de cantaria em quarenta segundos; quantas torres serão precisas para que sete pássaros façam uma volta..." Mais ou menos isso. Coisa à-toa, simples aplicação da regra de três; podendo-se também resolver rapidamente por análise. Pois levou mais de meia hora para dar com a solução! Uma vergonha.

- "Ainda assim, você é um bicho, Fabiano."

- "Não; em Matemática, serei bicho, mas de má qualidade: um burrego. De todas as ciências, a que dá com o meu feitio é esta" (e batia com a larga e magra mão sobre a capa de um livro de espiritismo) "é esta, a filosofia."

E Fabiano falou copiosamente sobre a doutrina espírita, "a mais consoladora de todas", e em particular sobre a moral, "sem discussão possível, a mais perfeita."

- "Fabiano" (lhe disse eu, apenas por dizer alguma coisa), "você conhece a moral de Sócrates?

Ele sorriu:

- "Esse, justamente, freqüenta o meu círculo. Um espírito evoluído. Adiantado!"

E dizendo "adiantado", Fabiano esticou os beiços para um assobio, que deixou subentendido. Mas eu, intrigado, questionei:

- "Como é isso, ó Fabiano? Então Sócrates freqüenta..."

Ele sorriu com bonomia, explicando:

- "Manifesta-se, compreende? Está desencarnado há muitos anos, desde um desastre que houve aqui na Central. Saiu com as pernas esmigalhadas. Nesse mesmo dia visitou uns nossos irmãos, no Pará; por sinal que fez o pobre do aparelho gritar com dores nas pernas!"

Fabiano discorria, discorria. A certeza da verdade dava-lhe um ar de beatitude. "Ele já parecia respirar o eterno, planava além de todas as coisas perecedouras, que vão da molécula às estrelas. Este prático de farmácia, que acabava de largar o almofariz para ir comprar uma porção de calomelanos à drogaria, achava-se absolutamente integrado nos planos perpétuos da vida e do movimento universal. E o curioso é que se consolava com isto.

Ia sorrindo, no bonde, como sorriria um arcanjo na sua biga de chamas, através do infinito, assistindo ao florir e ao despertar das constelações pelos abismos sem fundo. Ou como uma criança contemplando um queimar de rodinhas e traques.

Com isto, deixei de fazer o meu soneto. Quando pretendi reinvocar a inspiração, ela havia batido as asas. Um acaso ma trouxera, um outro ma levou.

Assim acontece com tantas coisas belas e boas da alma! Nascem e morrem por aí na sombra e na bruma da vida larvada. Nascem por acaso, por acaso morrem. E nós caminhamos sobre as flores mortas dos nossos jardins interiores, como um cordão de porcos-do-mato sobre uma camada de pétalas, na época da inumerável florescência dos manacás. Mas entre a preta Gabriela e o boticário Fabiano, minha alma teve um momento de ventura inocente, embalada no berço dos ritmos e dos timbres. E, se não chegou a perpetrar nada, tanto melhor.

O melhor da poesia e de tudo quanto se lhe parece é a elaboração, o estado de graça, a embriaguez esporeante, a doce liberdade interior em que vive quem a elabora ou rumina. Talvez que o mais alto poeta seja um simples ruminante mudo de formas, O mais, vaidade e pretexto. Bendita a Gabriela, e bendito o Fabiano.

RUFINA

- "Entre, Rufina."

Quando eu voltava, hoje, para casa, lendo uma folha da tarde, ouvi soar essa frase num dos bancos dianteiros. Instintivamente, olhei: Quem a proferira fora um senhor idoso, com uma grande cara bonacheirona e sonsa, dirigindo-se a uma rapariga que, não sei por que motivo, parecia hesitar sobre o estribo, como uma baratinha machucada.

O bonde estava parado. Quando o homem acabava de falar, o carro subitamente arrancou, e a moça ia perdendo o equilíbrio, soltando um desses guinchos de boneca rapidamente apertada na barriguinha. Dei um salto, voei, e quando caí em mim estava agarrando a jovem por um dos braços com a energia de um guindaste, enquanto os passageiros se levantavam à uma, como se o bonde fosse peneira de sururucar em movimento, e eles quirera.

Larguei logo a presa, que, cabisbaixa e ruborizada, foi para perto do senhor idoso. Como este me fizera uma cortesia, agradecendo a intervenção, aproveitei-me da oportunidade para pedir desculpas à menina, ainda arrufada do incidente, de a ter agarrado um pouco à bruta, no receio de a ver sofrer uma queda. Ela riu-se, com uma pontinha de desdém.

- "Queda? Ah! disso não havia perigo. Tomo o bonde em movimento a cada passinho!"

Curvei a cabeça com dignidade, como quem deliberadamente interrompe uma situação delicada; recostei-me, e recomecei a leitura da minha gazeta. Tentei recomeçar. Mas não podia dar com o seguimento do artigo em que viera mergulhado. As seções tinham feito um chassê-croasê completo. Trechos vistosos, que antes me saltavam aos olhos, agora andavam brincando de Maria-condê pelas oito páginas do diário. Cheguei a desconfiar que alguma página se houvesse evaporado. E, na correnteza das minhas emoções embrulhadas, a consciência apenas tinha força para me sussurrar:

"Toma, burro! Bem feito. Por que é que te meteste? Por que é que não a deixaste periclitar à vontade?"

Já então, o gesto da moça, que fora quase imperceptivelmente abespinhado - também, com aquele susto - me reaparecia, em imagem, todo a arder em pura má criação. Cheguei a sentir por ela uma espécie de ódio. (Digo espécie de ódio, porque teria remorso, caso julgasse o meu coração à ligeira, capaz de tão grosseiro sentimento. O amor da justiça é inato nas almas; todos temos infinitos escrúpulos em sentenciar contra nós mesmos.)

Como quer que seja, no aceso da raiva, afastei um pouco o meu paravento, isto é, o meu jornal, e dardejei contra a rapariga uma torva olhadela de esguelha. Ela estava agora voltada para mim, de um modo repassado e calmante, olhando-me com esse ar de complacência desinteressada com que se contempla um animal de jardim zoológico. Dei imediatamente à minha olhadura envenenada o ar mais neutro e casual que foi possível. Sorri. Ela sorriu. Aquilo foi como se um céu borrascoso de repente clareasse, todo florido de nuvenzinhas recém-nascidas, castas como roupa lavada ao sol. Sorri, mais docemente. Ela baixou as pálpebras pestanudas e deu meia volta ao rosto moreno e rosado sobre cuja superfície; dura e lisa como a de uma figura de biscuít, o fumo de um cigarro vizinho punha a indecisão aérea de um tenuíssimo nevoeiro. E ainda sorria; e pude perceber que por entre a franja dos cílios a sua íris umidamente faiscava, enviesada para o meu lado, embutida numa sedosa penumbra. E os cílios palpitavam.

......................................................................... ainsi
qu'un noir feuillage où filtre un long rayon d'étoile.

Nisto, o velho bezerrão fez sinal ao condutor e, na sua voz plácida: "Vamos, Rufina; mas não caia!" A moça riu-se de boa vontade, como um lindo modelo para anúncio de dentifrício; fez-me um cumprimento de cabeça, largo e cordial, e saltou, acompanhada pelo velhote.

Vieram-me ímpetos de saltar igualmente, mas uns temores me agarraram ao banco, pelos fundilhos, como cola. Não me acharia ela ridículo. Não daria o meu ato na vista dos passageiros? Refleti que este receio era estúpido. Eu tinha o sagrado direito de saltar onde quisesse. Demais, como é que se podia decentemente receber um sorriso de mulher bonita, sem a seguir, ainda que a custo de algum risco?

Ia eu refletindo, quando olhei para trás: Rufina tinha desaparecido. Bolas! Encolhi-me, num acabrunhado desprezo de mim mesmo, e deixei o bonde rodar. Quando dei acordo de mim, era o único passageiro restante e estava no fim da linha. Só, só na solidão do carro vazio. Só e triste como a fruta murcha que ficou no fundo do cesto. A voz do condutor português rolava, irônica, conclusiva, retumbando-me na alma como a voz do pai de Hamlet nos subterrâneos de Elsenor:

Pooonto finale!!!

O PESCADOR E O SILÊNCIO

"Com que então, Barbosa, você é pescador?"

Esta simples frase, dita numa voz branca, de um jeito quase distraído, me ia hoje rendendo uma quebra de amizade.

Frederico Paulo Barbosa Ramires é o homem mais calmo, sisudo e direito que jamais conheci. O senso comum encarnou-se nele como a seiva se infunde e se solidifica numa cabiúna. Dir-se-ia que a própria arquitetura de Barbosa fora armada com aquele material primário: os ossos robustos, as carnes duras, o corpanzil maciço, a fisionomia densa de hoplita membrudo. Familiarizamo-nos há muito. E nunca descobri no meu amigo uma trinca, um recanto desleixado, uma dependência indecisa e frouxa.

Vendo-o, hoje, no bonde, de caniço em punho, tive uma pequena surpresa, olhei para ele fiz-lhe aquela pergunta inócua. Parece que lhe toquei num ponto dolorido. Não se desconcertou, nem se irritou propriamente, mas respondeu-me com um nadinha de impertinência:

- "É verdade; pescador. Todos têm a sua mania, a minha é esta. Não faz mal a ninguém - senão aos peixes. É higiênica, tem a sua dose de poesia..."

- "Bem, Barbosa, pesque, pesque, isso não precisa de justificação."

- "Mas, se eu quiser justificar?"

Fez então o elogio da pesca de vara. Uma pessoa fica à beira da água com a cana em punho, lança o anzol, e espera. Não há nisso nenhum desbarato de energias físicas nem morais. Por outro lado, não há tampouco a mínima astúcia nem a mínima violência. Fica à espera. Não corre atrás do peixe, não vai agarrá-lo. Nem o enxerga sequer. É como quem tira a sorte. O rio traz o peixe, o peixe vê a isca, engole-a, engasga-se. Então, o pescador sente na ponta da vara um estremecimento característico, dá-lhe um meneio, e puxa.

- "Como vê" (prosseguiu) "a intervenção do pescador é em tudo semelhante à do acaso, ou dos acidentes cegos que semeiam o curso dos rios e de todas as coisas. Ele espera, entendeu? ali, parado. Não vê o peixe, não sabe se o peixe virá, nem de que espécie há de ser caso venha; não sabe nada. Espera. É de uma imparcialidade absoluta."

- "Em todo caso atalhei, sabe que o rio é piscoso. E a imparcialidade, aí, quer dizer simplesmente que qualquer um serve."

- "Sim. Mas o peixe, se não pegasse no anzol, seria imortal? Não teria de morrer logo adiante?"

- "Dizem que eles têm o sestro de viver muito; até duzentos anos, conforme.,'

- "E você acredita isso? Quem é que contou os aniversários do peixe? E depois, olhe aqui, e depois que vem a ser um século ou dois diante da imensidade do tempo."

- "Alto lá, nós não vivemos a imensidade do tempo, Barbosa. Com esse artifício metafísico, se tem justificado muita pose de espíritos inumanos e muita monstruosidade material. Nós vivemos um minuto! Esse minuto é que deve ser a nossa medida. Tudo que o excede é imensurável. E, sendo imensurável, é sagrado."

- "Ahn..."

- "Mas, falando sério, você não precisa ter esse trabalho de justificar o seu gosto. Nada de repreensível na pesca, nem mesmo na caça. É lei do mundo que as espécies umas às outras se exterminem, por necessidade, por esporte, por prazer, por passar o tempo, é lei do homem que combata as outras espécies todas e a própria. Que lhe havemos de fazer? Observo-lhe, simplesmente, que a sua filosofia piscatória poderia justificar também uma larga parte da moral corrente nas relações humanas. Lança-se o anzol, fica-se à espera. Conheci um mercador que, fisgando e aleijando o freguês, não se desculpava por outra forma: Veio porque quis! Não obrigo ninguém a comprar."

- "Mas está muito direito" (replicou Barbosa). "Ele tinha razão. Eu, dono de um negócio, daria o preço que bem entendesse às minhas coisas."

- "Você não o faria, Barbosa."

- "Faria, sim, e você também."

- "Pois, se eu o fizesse, seria um espertalhão como qualquer outro."

Barbosa amuou, resmungou, e creio que só a sua sensatez e bonomia de animal forte, o impediu de levar adiante a contenda. Separamo-nos sem nos encarar. Fiquei penalizado com esse primeiro fio partido na teia de seda que vínhamos tecendo há tantos anos. Por um fio roto vai-se às vezes o tecido inteiro.

Todo o mal está em se falar demais.

O que vale deveras, deveras, nos indivíduos, não são as idéias, que mudam, que ondulam, que o menor sopro de interesse ou paixão modifica, é o fundo indefinível de bondade que neles exista. E esse fundo mesmo, e preciso que não se pretenda apurar com fúrias de análise! Não é senão um pouco menos mudável e incerto, neste perpétuo devenir em que tudo o que vive se resume num equilíbrio momentâneo e precário de elementos errantes e fluidos.

Devemos crer nesse fundo, sem o examinar com insistente rigor. A nossa boa vontade o faz crescer. Acreditar que ele existe é corroborar-lhe a existência. A nossa fé transfunde-se no íntimo dos outros como uma levedura vivaz. E assim cada um de nós é um pouco criador; criador das mais doces coisas do mundo.

Os homens de bem são geralmente melhores do que a sua própria lógica faria supor. Há indivíduos excelentes que falam como cínicos ou malvados.

A palavra não foi dada a todos os homens para encobrir os seus pensamentos: foi dada à maior parte para encobrir a falta de pensamento. Felizes os que ainda têm pensamentos que encobrir! A maioria pensa à medida que fala. A necessidade de falar é que a obriga a pensar um pouco. E há pior: a necessidade de falar a obriga por vezes a dizer coisas que nunca teria pensado.

Era preciso falar muito menos. O silêncio seria a nossa melhor cura. E seria freqüentemente a melhor das satisfações que pudéssemos dar de nós, em nossa irremediável enfermidade.

No silêncio germinam as forças heróicas. No silêncio condensam-se as forças invencíveis. O silêncio é a túnica invisível e pesada das almas inquebrantáveis, sumidas na profundidade triste da sua clarividência e da sua piedade.

Silence and Secrecy! - palavra de Carlyle que devia ser a divisa das almas religiosas, isto é, das almas humanas.

Os amigos deviam estar juntos apenas para se sentirem viver um ao outro, mantendo entre si esses largos silêncios falantes que são o que há de mais expressivo na linguagem do amor. A linguagem do amor é uma brosladura vã de palavras sobre um fundo uniforme de sentimento. Para que sobrecarregar a brosladura? Para que arriscar desenhos supérfluos que podem comprometer irremediavelmente o tecido? A linguagem apropriada seria musical, a meia voz, lenta como um cantus planus envolvido pela melancolia suave que banha as felicidades efêmeras.

O mundo com todas as suas complicações miseráveis e a nossa personalidade mundana e aparente, com todas as suas pretensões, e imbecilidades, mistificações e parlapatices, deveriam desaparecer, como fumo varrido por um vento puro e purificador, diante do milagre de duas almas que de verdade se querem, - milagre! coisa incompreensível e estupefaciente, nesta raça de macacos famélicos e obscenos. E seria como se cada uma dissesse para a outra, sem dizer nada: "Eis-me aqui. Tal como sou, eis-me aqui: um pouco de lodo com duas asas. Amemo-nos, pelas nossas asas. Mas em silêncio, chut! em si-lên-ci-o... Basta o sopro de uma palavra vã para que essas asas se rompam como teias de aranha!

Etre méconnu memê par ceux qu'on aime, é est la coupe d'amertume et la croíx de la vie... escreveu Amiel com o seu sangue.

Dentro do silêncio, a compreensão mútua, despindo os incômodos véus da palavra exterior e dos conceitos ordinários, e mesmo da palavra interior, poderia assumir a forma serena de uma iluminação. De uma claridade difusa e divina. Para além da lógica tardígrada das magras aparências, das reflexões esterilizantes. - Poderia. Mas!...

O HOMEM QUE FUMA

Vou deixar o hábito de ler no bonde, hábito estúpido. Ver o homem viver é mais interessante do que ler as histórias do que ele faz e pensa, (ou pensa que pensa.) É certo que no bonde, geralmente, salvo numerosas exceções, vai quieto e sorumbático. Mas onde quer que esteja, e como quer que esteja respira humanidade. E os seus gestos e momos mais fugitivos são debuxos descosidos do grande jogo de cena que faz a dramaticidade da história.

"Todo ser humano é para mim um templo, e eu gostaria mais de distinguir os traços originais, as leves pinceladas que aí se encontram, do que de ver o famoso quadro da Transfiguração de Rafael." Esta opinião de Sterne em sua Viagem Sentimental, é justamente a minha. Honra a Sterne. - Só divirjo dele em que não gosto apenas dos traços originais, mas de todos. Aliás, no fundo, cada homem é sempre uma síntese original, um composto único, um exemplar sem parelha. A nossa visão grosseira ou a nossa necessidade e sede de catalogação é que nos obriga a converter as semelhanças em identidades e as analogias em semelhanças, a criar espécies e gêneros para ver o indivíduo, única realidade tangível, único depósito real de humanidade vivente e vibrante.

Viajei ao lado de um homem que, pela casca, devia ser negociante de secos e molhados. Era, de fato. Cheirava a suor, tinha os dedos grossos e encardidos, trazia um casaco de casimira cinzenta semeado de respingos, coscorões e tintas de varias cores. Contudo, carregava relógio com uma grossa cadeia de ouro, guardava na pupila a chispa da independência e, enfim, tinha esse ar de cavaleiro garbosamente escarranchado em cavalgadura mansa, tão próprio dos homens classificados e prósperos.

Mascava um toco de charuto, soltando baforadas na cara dos vizinhos, entre os quais havia senhoras de várias idades, formatos e cores. Não lhe ocorria sequer a idéia de que pudesse incomodar. Isso me irritou, e figurei-me logo esse mesmo homem, em mangas de camisa, por trás do balcão a desfazer-se em mesuras com os habítués do parati e em gatimonhas gentis com as cozinheiras.

Portanto, um abjeto ganhador de níqueis? um tipo que se faz calculadamente macio e untuoso quando lhe convém, altaneiro e maroto quando não depende? Não será bem isso. Para ele, ser paciente e obsequioso com a freguesia é uma forma de virtude. Disto se ufana. Ensina essa virtude ao caixeirinho, ensina-a aos filhos, e está candidamente plantado na convicção de que o Bem é uma coisa que logo se reflete na gaveta.

No bonde, o Sr. Joaquim já não é um negociante, é um passageiro. Aí, já não sente os limites que de ordinário lhe circunscrevem a personalidade, pungindo-lhe a carne; dá liberdade ao corpo; reveste, como uma roupa larga, os gestos e modos comuns do passageiro.

A este não lhe incumbem senão três coisas: pagar a passagem, não fumar nos três primeiros bancos, e só ocupar o lugar de uma pessoa - o que não é difícil, a menos que tenha um volume incapaz de redução à unidade, na aritmética dos bondes. De resto, todos iguais perante o condutor e o motorneiro. Todos podem, ser brutos, dentro das regras, bastante amplas, que presidem a vaga polícia dos carros. - O Sr. Joaquim está igualmente compenetrado deste princípio, que da mesma forma já se lhe incorporou à maquinalidade dos reflexos.

Ora, quem estiver isento de culpa, esse lhe atire a primeira pedra! Todos, nesta vida, cada um a seu modo, não fazem senão aquilo que faz o Sr. Joaquim. Todos, no fundo, vendeiros amabilíssimos com a freguesia, e passageiros que fumam nos bondes da vida muito à sua vontade.

Onde estão a originalidade do Sr. Joaquim? Eis o que não pude descobrir, mas tenho a certeza de que lá está, dentro dele, como uma pérola no ventre de um galo. Questão de tempo e de paciência. - Há criaturas difíceis de decifrar. São enigmas que a Vida compõe para os propor a Deus, o grande matador de todas as charadas.

RUFINA

Esquisita vaga de saudade! Ontem, anteontem, nada vi no bonde: nada vi senão Rufina, a moça que salvei de um desastre iminente.

A princípio, entrei a duvidar se ficara preso ao feitiço da sua pessoa, que tinia de vida e mocidade, se lhe guardara afeição apenas pelo fato de a ter socorrido. - Há no fundo de nossa alma um veiozinho de sentimento que fica agradecido aos que nos devem serviço. E quando quem deve o serviço é uma bonita mocetona, temos evidentemente uma complicação a mais.

Ser útil a alguém no perigo ou na penúria, é o melhor caminho para vir a querer-lhe bem: fica-nos pertencendo um pouco, já que nos custou alguma coisa. Andam errados os moralistas filantropos quando pregam a necessidade de amar ao próximo como condição e preparação para o ajudar e suportar. O primeiro passo é ajudá-lo e suportá-lo: o amor vem depois.

Mas isto não tem nada que ver com o amor-amor, amor-desejo, o amor-folia; e a perturbação que Rufina deixou em mim veio muito menos do susto de que a livrei do que do filtro luminoso que a furto se lhe escorreu de entre as pálpebras semicerradas.

..................................... un long rayon d'étoile!

Ah! Rufína, meteoro rutilante perpassaste pelo céu caliginoso de minha vida! Estarás a estas horas olvidada de mim. Nem por um momento esvoaçará tua cabecinha pequenina e redonda a idéia de que deixaste um farpão enroscado na carne de um pobre funcionário; de que esta pobre alma, jogada de cá para lá sobre os trilhos imutáveis, está a ver-te sempre no mesmo banco, ao lado do mesmo ancião de rosto severo e pausada voz, como um avezita ao lado de um rinoceronte. - Perdoa-me, se é teu pai, ou teu avô, ou padrinho; mas não podias ter companheiro que melhor fizesse realçar a tua brevidade graciosa e arrogante de galinha garnisé.

Não te verei mais, Rufina?

BRINQUEDOS

No bonde em que voltei da cidade, hoje à tardinha, vinham crianças com brinquedos.

Perto de mim, um senhor idoso e barbeado fazia ver ao filho de seis anos como funcionava um galante volantim mecânico, que o pequeno, mais por comprazer ao tipo velho, inutilmente lidava por acionar.

Mais adiante, uma senhorita loura, sopesava uma bola nas pontas dos dedos compridos, fazendo-a girar velozmente, com prazer, como sentindo nas papilas, a carícia de uma tatilidade nova, e uma sensação ótica inédita na rotação dos gomos bancos, azuis, amarelos e escarlates. E essa dança de cores parecia emanar, pela mão translúcida e ágil, como um vago punhado de flores e de borboletas, de toda aquela pessoa que se diria a própria Primavera a viajar de bonde.

Perto, uma menina embezerrada olhava esse exercício e essa bola com um ar de proprietária complacente, estéril de uma bola.

Na cidade, quando lá perambulei à cata do bonde, havia azáfama nas lojas de brinquedos e novidades. As crianças eram poucas, porque geralmente os grandes não gostam de sair com crianças e porque, nestes dias de festas, preferem fazer-lhes a clássica surpresa. - Na verdade, os grandes é que se divertem com os presentes que fazem; e, não satisfeitos, ainda se reservam, no seu egoísmo, o direito de saborear a surpresa dos presenteados. É com delícias que aproveitam, entre Natal e Reis, a concessão feita pelos costumes para mergulhar a sua infantilidade envergonhada no mundo maravilhoso das coisas inúteis e bonitas.

Outrora, mais ou menos até Rousseau, considerava-se a criança como um homem pequeno. Os próprios artistas as presentavam como adultos em escala menor. Muito custou reconhecer-se que o homem é que é uma criança crescida. Entretanto, dir-se-ia que isso entra pelos olhos.

Para as crianças ainda não crescidas, tudo é brinquedo.

O brinquedo especializado é uma invenção que os grandes fizeram para se divertirem com eles e com as crianças. Estas muitas vezes, se vêem reduzidas ao papel de usufrutuárias, ou menos ainda, ao de guardas e conservadoras dos bonitos objetos. Para elas, coitadas, tudo é brinquedo. Uma toalha enrolada, que se revestiu de um casaco velho, faz o papel de uma boneca perfeita, ainda melhor do que a própria boneca perfeita. Um cabo de vassoura pode ser um cavalo sem rival, com vantagem de não impor ao dono sua raça, nem os acidentes da sua forma ou do seu caráter, mas com a capacidade preciosa de ser árabe ou ponney pangaré ou ruano, fuá ou poleiro, à vontade. Uma galinha, um ferro de engomar, um grilo ou uma caixa de fósforos são divertimentos mais interessantes e de mais durável prestigio de que o macaco de pau que sobe por um cordel, do que o trenzinho de ferro com túneis e estações, do que o palhaço que gira sobre o calcanhar de pinho e tilinta soalhas e guizos de lata. - Estas observações não são originais, mas apesar disso são justas.

É verdade que os petizes recebem com ânsias esses presentinhos de festas, e fazem a propósito um pouco de rumor. É o atrativo da novidade. É a pressa de ver e experimentar. É o prazer de dizer "meu". É a tentação de fazer inveja aos outros pequenos. É, sobretudo, a mímica do desejo, do alvoroço, da cobiça, do egoísmo apropriador, que os grandes lhes têm ensinado e que os pequenos vão executando, numa adaptação mecânica do sentimento confuso e alvorecente aos recortes do gesto distinto e expressivo.

As crianças amam acima de tudo a espontaneidade da sua própria imaginação, que os brinquedos, quanto mais complicados e perfeitos, mais embaraçam. Ou então preferem a complicação extrema e sempre nova das coisas vivas. Se por natureza são assim, devia deixar-se obrar a natureza. Mas os adultos querem o artifício, todos os gêneros de artifício, e impõem-os às crianças, perturbando-lhes o viço da curiosidade espontânea e da livre investigação. Por isso mesmo, a ciência é o último luxo da humanidade, sendo o seu primeiro desejo.

A ROUPA E O GESTO

Gosto de viajar no último banco. Vai-se mais resguardado de maçantes. Pode-se inspecionar o carro inteiro, quase sem ser visto. Não se vêem caras.

Evita-se o risco de pagar a passagem para os amigos que não o são, e pode-se fazer aos amigos que o são a surpresa de lha pagar, numa traição delicada, pelas costas, - o que, como fineza, tem na sua independência um especialíssimo sabor. - Por fim, pode-se fumar sem a preocupação de ser incômodo a senhoras, por que muito raramente vão senhoras no último banco e dá-se a coincidência de não haver outro depois do último.

Aliás, deixo de fumar perto de senhoras, não por uma particular deferência, mas apenas para não me incomodar a mim mesmo. Saborear um cigarro é prazer tão leve e tão fino, que o simples pensamento de que alguém no-lo possa estar amaldiçoando amarga os gorgomilos e embacia a transparência azulejante das espirais.

Apesar de preferir ordinariamente o último, fui hoje para o primeiro, e fiz toda a viagem voltado para o resto do carro. Não influiu nisto o fato de eu envergar o meu novo terno cinzento e de estrear uma comburente gravata de listras amarelas e filetes encarnados.

Não. Detesto exibições. E não distingo entre exibições, sejam de roupas, sejam de talentos ou virtudes, sejam de vícios ou maroteiras. Propendo até a perdoar mais facilmente a exibição de roupas, que não é assim tão idiota como inculcam os que não a podem pagar.

Ter vaidade de uma farpela bonita é geralmente uma falta venial e, por assim dizer, exterior, que não repercute nas regiões nobres da alma; ao passo que a vaidade intelectual envenena e turba as próprias fontes do pensamento, e a vaidade da boa ação destrói exatamente essa misteriosa e fragílima levedura de heroísmo, que é o seu único valor, - o imponderável que a análise não pode reduzir e ante o qual o escalpelo se detém, enquanto faísca no olho implacável do operador uma centelha de humana emoção.

É a vaidade exterior que tem preservado na mulher o seu secreto manancial de piedade e de energias profundas. Aparentemente frívola, ela é na realidade mais forte e melhor. Os seus tecidos aéreos, as suas rendas e fitas, as suas exterioridades espumosas e florais de criatura espetacular, são na realidade umas couraças, uns adarves, umas muralhas, - são tranqueiras e circunvalações defensivas que a mulher estende em redor de si, para ir entretendo o inimigo enquanto ela conserva lá dentro, na intimidade da cidadela sacra, o seu tesouro e o seu altar.

Não, a indumentária (termo suntuoso, que eu sentia envolver-me, luxuosamente, como a coisa designada) a indumentária não me influiu na resolução de ir para o primeiro banco. Predispôs-me bem, quando muito deu-me um calorzinho de otimismo e de simpatia difusa. Isto, sim. - De onde infiro que devíamos usar mais freqüentemente de roupa nova, revezando-a talvez com as mais velhas, para acentuar o efeito pelo contraste, mas enfim usar mais freqüentemente de roupa nova.

Se todos vivêssemos enfiados em estojos de boa fazenda e bom corte, de certo lucraria a disciplina interna das almas e com ela a facilidade e o concerto das relações entre os homens. - Um indivíduo rudemente estrafegado pela vida, mas sempre cingido em ternos corretos e confortáveis, suporta com outra filosofia e outra elegância os baldões da fortuna. Principalmente, é claro, quando a roupa está paga.

Homens há que são relembórios por teima, por descaso, por sistematização inconsciente das sugestões da preguiça, da somiticaria ou da falta de gosto. Querem fazer crer que são assim por vontade e que vão executando um programa bem meditado. Dão-se ares de desprezar profundamente essas materialidades ineptas. E a verdade é que são às vezes sinceros. Mas como se iludem!

O indivíduo mais sinceramente lavado de vaidades decorativas não pode, quando menos, quando menos, deixar de sentir a cada instante a discrepância em que se encontra nos meios que freqüenta. Então, para manter a sua atitude interior de dissidência, não pode evitar a necessidade de pensar nisso, de fazer reflexões que deixam forçosamente um sedimento amargo, sobretudo quando reagem contra atitudes e atos depreciativos com que esbarrou. Sendo assim, onde está a liberdade interior que ele pretende prezar acima de tudo? A liberdade perfeita e bela seria a que implicasse no mesmo desprezo profundo e sereno as materialidades exteriores e todas as suas conseqüências - a liberdade de Diógenes ou de Francisco de Assis. Sem isso não é liberdade: é um simulacro, um escamoteio, um sofisma em ação, que traz consigo mesmo a sua pena perpétua, como a sua própria sombra.

Um dos seguros efeitos da roupa nova e bem cortada é que ela cria e mantém o hábito das posições perfiladas e dos movimentos harmoniosos. Vale por um esporte. Excelente esporte para o corpo, visto que o submete a uma disciplina retificadora e a uma continuada economia de força. Excelente esporte para a alma, que se modela à feição do corpo. - As atitudes e movimentos da alma são atitudes e movimentos corporais: a alma põe-se de pé, acocora-se, desliza, descai, ajoelha-se, caminha direita e alegre, ou cambaleia, ou rasteja. A alma toma todas as posições de luta, desde a de um calmo e melódico guerreiro de Fídias até à de um torpe moleque agachado e sinuoso, com a navalha empalmada e o pé igualmente pronto para a rasteira ou para a fuga.

Nas aulas de educação moral e cívica devia-se ensinar, antes de mais, a selecionar e fixar posturas e gestos. Aquele que aprendeu uma simples maneira nova de segurar o cigarro, de puxar e soltar a fumaça, de arremessar o coto, uma certa maneira vivaz, ritmada, incisiva e distinta de realizar todos esses pequenos movimentos, adquiriu alguma coisa que positivamente lhe modifica a personalidade, por via de ressonâncias que se vão convertendo em movimentos interiores habituais. - Inversamente, para convencer uma menina de que ela deve ser boazinha, não há como convencê-la de que assim se torna mais bonita. Há muito menina grande que faz toda a força do seu domínio interior com a simples preocupação de não ter cara de espeloteada ou de evitar a inflamação das pálpebras. Chamfort conta de uma dama que assim se justificava de assistir com olhos secos a uma comovedora representação teatral: "Eu choraria; mas é que tenho de cear na cidade".

Compreende-se bem a confusão que de ordinário se faz entre o gesto significativo e a coisa significada, entre o valor da virtude e suas aparências externas. Este pratica uma ação honrada, não por esta ou aquela razão abstrata, mas para poder andar "de cabeça erguida"; aquele, para poder "dar uma...", isto é, fazer um gesto violento e desaforado aos seus detratores. Conheci um homem que, dando uma grossa esmola a uma igreja, dizia: "Não é lá tanto pela religião, porque enfim eu vivo a fazer por ela o que posso; mas é cá por uma birra, - é um couce que eu prego ao Alvarenga, aquele idiota, que deu um conto de réis e disso se pavoneia."

A metáfora é mais do que um artifício pitural, é a gesticulação das almas.

Somos bonecos à procura de gestos. Estes preexistem e persistem fora de nós, e nós passamos por eles como a água passa pelos vasos e canais que a contêm e lhe dão forma, como a água passa pelos acidentes da própria correnteza e do próprio caminho, pelas suas rugas, pelas suas cintilações e sombras, pelas suas espumas e cachões.

Tomamo-los no lar, desde o berço, e na escola; apanhamo-los no teatro, no cinema, nos livros, nos quadros, na escultura, na rua, nas salas, na própria música, que espontaneamente se resolve em desenhos cinéticos de uma aérea e fulmínea expressividade.

Os gestos de dignidade serena, de compostura discreta e elegante estão, em parte, incorporados às roupas distintas, como um forro invisível. O alfaiate corta pelo pano e, sem o saber, vai cortando ao mesmo tempo por uma tela espiritual, fabricada por duas tecelãs incansáveis, a Humanidade e a Natureza.

Dizem que o hábito não faz o monge. Imagine-se o que seria um frade de São Francisco sem o seu hábito! O hábito só não faz o monge quando esse está de tal maneira conformado pela vestimenta, que já pode impunemente despi-la, sem de fato arrancá-la toda do corpo.

A toga foi talvez a mais importante das invenções romanas. De certo contribuiu mais do que tudo para fortalecer e ritmar, para esculturizar o caráter daquela gente estrepitosa e derramada.

Por uma razão semelhante, as estátuas clássicas (isto me parece que foi dito por Alam) são formas imperecíveis de idealidade ética, formas que precedem e sobrevivem ao conteúdo ideal que nelas vão sucessivamente vazando as gerações.

A roupa é muita coisa, porque a expressão é tudo. Tudo quanto em nós representa idéia, pensamento, espirito, são expressões que se refletiram para dentro e puseram um pouco de luz e de ordem no caos de que brotaram - como esses deuses barbáricos e frustes que nasceram da pedra informe, das águas indeterminadas, dos elementos brutos e confusos, para individuar as coisas e esboçar uma organização do mundo.

RUFINA

Hoje de manhã, ao tomar o bonde, lobriguei lá dentro um vulto de mulher e, com a instantaneidade do raio, enxerguei a imagem de Rufina. Trêmulo, sentei-me, e verifiquei: o vulto era uma velha gorda e tostada. Fechei os olhos, procurei esquecer-me da velha e de Rufina - ejusdem farínae, afinal de contas! - e comecei a resolver o seguinte problema: qual seria a renda bruta da companhia, supondo-se que tinha em tráfego quatrocentos bondes, cada bonde transportando em média vinte e cinco passageiros? A questão me interessava, porque estou tratando de redigir uma reclamação para a imprensa contra certas irregularidades do serviço.

- Vejamos. 25 x 200 = vinte por duzentos, que são 4.000, mais... Ru-fi-na... cinco por duzentos, que são mil... Erre, um = Ru.... Quatro mil mais mil, cinco mil; cinco mil que? Ora, o diabo da velha! Cinco mil contos... - Desisti das contas. A matemática é inconciliável com o coração. É inconciliável com a vida.

Como é que Newton pôde ser pai de família, ter uma esposa, ter filhos, ter afetos, preocupações, desejos, e calcular continuamente? Eu, quando alguma vespa me pica, faço até as máquinas de cálculo errar uma adição. Tudo aquilo em que ponho as mãos desconcerta, extravaga. Até o Melquíades, meu servente, que em matéria de calma e paciência e um urso de bazar, fica esparavonado, entorta, arrebita e disparata!

Preciso esforçar-me para me corrigir. Não tanto, porém, que me torne apto a maquinar friamente com a cabeça no meio das tormentas e das delícias da vida. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Eu prefiro sonhar com Rufina a cavar uma celebridade em cálculo diferencial.

O GATO

Sentei-me hoje ao pé de uma velhota embrulhada num xale. Logo notei, sem ter nada investigado, que ela dissimulava qualquer coisa por baixo da manta. - Como foi que cheguei a isso? não o sei ao certo. Um movimento de suas mãos ocultas a arrepanharem o xale sobre o regaço... o seu ar demasiado "inocente"... sei lá.

Eu podia ter-me ufanado da minha perspicácia. Mas não. Nem houve propriamente perspicácia alguma; ou, se houve, foi toda inconsciente: pouco se me dava daquela mulher, do seu xale, dos seus gestos. Ser Sherlock por vontade, por estudo, por aplicação determinada e metódica da inteligência, é um esporte razoável, embora não me seduza. Mas esta espécie de "suspicácia" inata e vulgar é aborrecível como todas as inclinações tolas e baixas.

Senti-me desgostoso de mim, e mal me consolei com a reflexão, que fiz em seguida, de que o dom não me era particular, nada tinha de diferencialmente pessoal, Pois que alheio a todo pensamento, a toda vontade e a toda tendência definida. É qualidade humana, com raízes fundas na camada mais funda da nossa humanidade. Todos temos dentro de nós um bicho indiscreto e malévolo, em simbiose com o nosso Eu distinto e consciente, que às vezes o ignora ou faz por ignorá-lo, ou mesmo lhe dá largas.

Arrastado pela curiosidade, antes que acabasse de refletir, não me custou perceber que de fato a mulher escondia qualquer coisa, e que essa coisa era um gato. Um gato branco, boquinha rósea, olhos muito grandes estriados por um chuvisco de luz entre vegetações de esmeralda e ouro. Tinha um ar pouco amigável, meio enfezado, meio suplicante. - Percebi tudo isso num ápice, porque tenho a vista habituada a inspecionar gatos. É este o animal da minha predileção, o único semovente que me agrada sem reservas.

Gostaria também bastante dos cavalos de raça desde o possante Brabançon até o árabe naturalizado e aperfeiçoado nos haras de Inglaterra, por seu instinto da atitude pictórica ou escultural, se tais cavalos fossem do tamanho de gatos e se pudessem ter dentro de casa, pôr ao colo e deixar correr por cima das mesas. - O defeito desse animal é ser excessivamente grande. Isto o reduziu ao papel pouco distinto de mero acessório do homem, e tornou-o um prosaico objeto de utilidade ou de ostentação.

Dentre todos os caprichos da natureza, o mais estranho está nessa fantasia inutilíssima e zombeteira com que ela repartiu a força e a beleza pela escala das dimensões, no reino animal.

Os insetos, em regra, são feíssimos e fortíssimos; ao mesmo tempo, pequeninos e inaproveitáveis. Os cavalos e outros viventes grandes e belos são relativamente fracalhões. Tudo se resolveria bem se houvesse gafanhotos do tamanho de girafas, besouros do volume de vacas holandesas, pulgas das dimensões de bezerros; que motores formidáveis à disposição do homem! Entretanto, escusava que os animais nobres e formosos ocupassem tanto espaço e, sendo na verdade os bibelots da natureza, fossem condenados ao estábulo, à estrebaria, ao amanho da terra, à tração de veículos, ao trabalho bruto, à escravidão humilhante.

Essa a justiça da grande Mãe! E ainda se isso passasse exclusivamente com os bichos! Mas, não. Toda beleza é escrava. Mulher, - é o alvo e a presa da matilha esfaimada dos instintos. Vende-se nos mercados. Aprisiona-se. Condena-se a ser uma forma vazia, ornada de vermelhão, de pó-de-arroz e de jóias, com a noite dentro, como a cabaça mágica do bugre. Talento, gênio, bondade, amor, - tudo capturado, amarrado, explorado, torturado, agadanhado, sangrado, e finalmente reduzido a cacos, a cisco, a lama, a cinza, a pó, a pó que se espalha ao vento, entre o delírio e a confusão da macumba retumbante e frenética.

Ao cavalo, a certos respeitos, eu preferiria o elefante. Embora convivendo, em determinadas regiões, com a espécie humana, esse, contudo, guarda a dignidade de um escravo testarudo e resignado - obediente, fiel, mas inamoldável, sempre intransigentemente elefante. Não tem a elegância do nobre equus (elegância, aliás, já um pouco desacreditada, como a do estilo ciceroniano), mas lá tem a sua, que lhe é própria e, além de própria, intransferível, por mais que haja indivíduos humanos a quererem tomar-lha, na classe que compreende os grandes vendeiros, os desembargadores e os clérigos.

A elegância do elefante, revelam-na bem certos artistas. Há bibelots de louça, marfim ou bronze, em que ela se manifesta com a evidência da luz. Hierática, cheia, pesada, a massa liga-se às proporções e aos contornos numa sóbria unidade de concepção e de fantasia, e tudo é um só élan de inspiração enternecida e brincalhona. A gravidade unida ao peso, a paciência ao volume, a doçura à simplicidade, e um quê de majestoso, e um quê de ingênuo, e um quê de gaiato. - Apenas falta a essas composições o indefinível encanto da vida, esse encanto que resulta da nossa perversa inclinação para só gostar completamente das coisas que sofrem.

O certo é que, se eu pudesse possuir um elefante em casa, aí com umas dez ou doze polegadas de altura, e que me viesse comer à mão, e brincasse com o meu bichano, às correrias por baixo de mesas e cadeiras, isto me seria um verdadeiro enlevo na minha solidão povoada de imagens inertes. - O pior é que um dia... Tudo tem o seu fim neste mundo. Seria possível que o meu bibelot animado devolvesse antes de mim a sua porção de fluido vital ao laboratório do universo. O meu bichano havia de andar miando tristemente pelos cantos. A minha cozinheira talvez enxugaria lágrimas, às escondidas, ao ver-me acariciar o Romão, à hora das refeições, na ausência do outro.

Gatos que miam e cozinheiras lacrimejantes estragam uma casa. Desisto do elefantinho.

A verdade é que tenho um fraco pelos gatos, e fiquei a pensar no que a mulher do bonde faria daquele. Iria deitá-lo fora? Iria dá-lo a alguém que lhe destinasse o indigno emprego de caçador de ratos?

Eu estou convencido de que os gatos não querem mal ao gênero mus. Procuram agarrar os roedores por simples prazer e necessidade de brincar. E se preferem esses a quaisquer outros, é apenas porque o rato, de todos os bichos proporcionados ao felino doméstico, é, o que mais radicalmente difere deste.

O gato só pode compreender o rato como uma coisa sem afinidade alguma com ele, mais ou menos como nós encaramos os peixes, aos quais não concedemos nenhuma sobra de respeito, nem de simpatia, nem de piedade. São objetos de um outro mundo, criações de um outro plano, obras de uma outra série. A teoria que Malebranche sustentava com referência à sua triste cadela - cujos latidos de dor eram no seu entender simples passagem do ar pelo mecanismo da garganta - é por todo o mundo imemorialmente e inconscientemente aplicada aos peixes. O próprio dilúvio, condenação e aniquilamento de todos os viventes não embarcados, deixou à margem, isto é, dentro da água, esses interessantes autômatos.

O rato, roedor meticuloso, destruidor frio, amigo das sombras, dos recantos ocultos, das gretas e frinchas secretas, dos buracos dissimulados e recônditos, grande trabalhador sem horizonte, medroso, tenaz, esperto, estúpido, o rato é o antípoda psicológico e moral deste príncipe dos quadrúpedes, deste poeta de pelo, deste artista de garras, deste sonhador indolente e desdenhoso, que compreendeu a imensa utilidade de não fazer nada, amigo do sol, das noites de lua, dos jardins floridos, dos telhados altos e desertos.

Este, quando procura a penumbra e o aconchego, é no borralho familiar onde o fogo deixou um pouco da sua alma quente e errante, é entre cobertas moles e cariciosas, é no regaço quieto das pessoas pensativas, ternas ou tristes.

Acusam-no de ser desamoroso e ingrato. Julgamento mesquinho. O mal do gato está unicamente em não ser nem servil nem serviçal. O homem só compreende as afeições no seu tríplice aspecto de promessa, desejo ou saudade de serviços. (Triste de quem as concebeu algum dia como um culto e um puro gozo interior, esquecendo-se de que a vida que vale é a que se processa e corre da periferia do corpo para fora!)

O gato saboreia melhor do que os próprios donos a fina flor da humanidade, aquilo que há em nós de mais seleto, e despreza tranqüilamente o farelo. Por isso é que se apega mais à casa do que ao habitante, como alguém, de refinado olfato, que preferisse, numa paisagem, o ar embalsamado por um resto de perfume de flores ausentes.

O homem canta - Home, sweet home!, e vai para a pândega, a dissipação, o tráfico, as feiras dos negócios, dos vícios e das vaidades: o gato fica, adorando com recolhida finura o melhor produto do homem, o melhor retrato do homem melhor, a Casa, a Casa onde o fogo prisioneiro canta a ária encantatória das coisas perpétuas, verazes e substanciais, a mesa em torno da qual a família reparte o pão cotidiano em paz no meio da tormenta, as paredes de onde pendem alfaias e recordações, as portas em cuja tela de penumbra se enquadraram vultos amigos que nunca mais vieram empurrá-las, mas parece às vezes que vão chegar a todo momento, que andam ali perto, ali. - A Casa! A Casa do Homem, em tudo superior ao habitante que passa, ao hóspede mofino de uns dias fugazes; ilha de estabilidade, de composição, de recolhimento, de segurança e de amor, no meio da instabilidade, da precariedade, da confusão, do desperdício, da angústia e da loucura universal.

O homem faz a sua casa e foge dela; ainda lá dentro, foge em espírito; não chega a compreender nem a sentir que fez um mundo, um mundo maravilhoso, para o qual todo o mundo grande, desde tempos imemoriais, vem acumulando infinitos elementos; um pequeno mundo sensível e supra-sensível onde a soma dos elementos imateriais é incomparavelmente maior do que a dos outros, onde cada pedra ou tijolo, cada móvel, cada quadro, cada retrato, cada canto encerra uma saturação imensa de humanidade e de vida vivida e vem a ser mais rica em poder irradiante do que a mais carregada petchblenda...

Mas eu estava em que os gatos não têm aversão aos ratos. E não têm. O que há é que são antípodas uns dos outros. O bichano vê no rato um simples mecanismo, bom para esporte e brinquedo.

É verdade que das brincadeiras resulta muitas vezes o óbito da presa. Mas é natural que um gato não tenha idéias claras acerca dos sofrimentos e da morte.

Nós, que somos gente, ou tendemos a isso, apenas sentimos que há dor no mundo por experiência própria e individual, e nada nos custa como acreditar que a experiência dos outros possa coincidir com a nossa.

Por isso o rancor é dez mil vezes mais comum do que a piedade; além de que a piedade é freqüentemente uma forma de rancor fatigado.

Quanto à morte, pode-se muita vez duvidar que seja motivo de mágoa para algum dos que ficam; ao passo que se tem a certeza de que é festa para os herdeiros, pão para os gato-pingados, rócio para várias indústrias, e espetáculo para os vizinhos do falecido.

Tive ganas de ver se a dona quereria vender-me o gatinho, mas deteve-me a dificuldade do transporte. Se eu o levasse na mão até à secretaria, rir-se-iam de mim pelo caminho e na repartição. Carregá-lo no bolso, impossível. Mandá-lo levar a casa, despesa. Eu neste ponto me pareço muito com toda a gente: sou comodista e econômico em matéria de prazeres do coração.

Desisti da compra e consolei-me com os poetas que amam damas imaginárias, sob o pretexto de que as de osso e carne são imperfeitas, mas na realidade por uma questão de economia: pus-me a pensar amorosamente num gato ideal. E desfiei de memória aquilo de Beaudelaire:

Viens, mon bon chat, sur mon coeur amoureux,
Retiens les griffes de ta patte.

Logo o enxerguei junto de mim, grande, perfeito, maravilhosamente gato, lambendo a mão com a língua rósea, o olhar tranqüilamente perdido no borborinho das ruas, e como que a repetir aquela sentença grave de Eurípedes: "Zeus aborrece os homens atarefados e os que se agitam demais".

O gato é uma das mais completas expressões de beleza dadas ao mundo. Completas? Digo mal. Nem nós esgotamos todo o seu potencial, nem o próprio acabou de se realizar. Como os colibris, as rosas e os periquitos, é uma obra-prima, feita pela Natureza no caprichoso intento de mostrar como aquela que faz montanhas e mares é também capaz de compor coisas de paciência, de fantasia graciosa e de gosto quintessencial.

Desconfio, porém, às vezes, que não foi a Natureza, mas o próprio Deus quem modelou esses objetos com os próprios dedos, para humilhar o homem e divertir os anjos. E que os anjos os deixaram cair à terra por descuido, ou para os destruir. - É talvez por isso que os periquitos têm a cabeça achatada, e aquele arzinho de devotos irônicos, e aquele ânimo desconfiado e áspero que faz com que se irritem e escancarem o bico recurvo quando os queremos acariciar. De certo, é pela mesma razão que os gatos conservam essa aura de humana nostalgia que os distingue, essas atitudes de insatisfação gemente e errabunda, esses enrodilhamentos imóveis e solitários, com os olhos estanhados, esfomeadamente arregalados para o ar, como na desesperada esperança de ver cair alguma traga migalha do paraíso perdido!

APÊNDICE DO GATO

Meu Deus, como a arte de escrever é difícil e como eu faço bem de não escrever senão para mim mesmo! À medida que vou enchendo estas minhas costaneiras de almaço, trezentas coisas que eu dantes não suspeitava, se me apresentam, - pequenos e grandes problemas de composição e de expressão, de lógica e de verdade, de método e de maneira. Enxergando-os, palpando-os, sentindo-os bulir sobre a lauda como insetos descobertos e espicaçados pelo bico da pena, surpreendo-me de os ver tão numerosos e tão estranhos; e gozo um indefinível prazer: o prazer de não ser obrigado por coisa nenhuma, a atormentar-me com eles.

Um exemplo de inadvertência galucha: falando de animais bonitos e nobres, dei a minha preferência, precipitadamente, depois do gato, ao cavalo e ao elefante. Entretanto, seria tão natural que tivesse refletido em que os vertebrados, geralmente, são belos e que os há tão encantadores como aqueles! Tanto mais quanto Remy de Gourmont, nas suas Dissociações, já o fizera notar.

Na verdade, só há um animal feio, é o homem. O Esporte, que se aplica em fomentar a beleza física da espécie, tem nesse ponto fracassado, uniformemente, em toda a parte do mundo. Só apresenta indivíduos bonitos quando os colheu da natureza. Belos, sempre muito raros, ele não os revela em maior número do que o simples Acaso. O aspecto ordinário das suas legiões é desencorajante. - Os esportes particulares deformam, dando excessivo desenvolvimento a certas aglomerações musculares. Pensou-se em remediar, doutrinando o atletismo completo: vão-se com isso criando deformações generalizadas.

Veja-se entretanto um coelho, um veado, uma onça, um porco-do-mato em condições normais de desenvolvimento e saúde: cada qual, dentro dos princípios da sua construção respectiva, é uma obra deliciosa de acerto, de rêussite, de precisão sem sobras e sem falhas. Surge-nos sem traços de esforço nem de intenção, com a corrente naturalidade de um descuido! - Conformação e movimento permanecem dentro de uma lógica infrangível, de uma unidade perfeita, de uma economia necessária, onde cada coisa tem um valor e entretanto, se engolfa e se dissimula na totalidade. Nada que estale, bambeie, descaia, descole, descontinue; um admirável concerto de transições e transformações simultâneas e sucessivas. O jogo das massas e dos contornos perde-se fluidicamente em si mesmo. Cada imagem emerge da precedente como numa espiral de fumo, dissolve-se na seguinte como num caleidoscópio sem recortes e sem chocalho. Tudo facilidade, afinação, fusão, correnteza, equilíbrio, tudo aquela suprema simplicidade que é o nome familiar da complexidade infinita na perfeição.

Bem, mas porque foi que eu cometi esse erro? Porque estava possesso de Rufina. A imagem da moça do bonde se interpunha entre mim e os bichos, o som da sua voz golpeava cada momento a membrana fragílima das minhas idéias, os seus gestos rápidos rebentavam a todo instante o meu colar de miçangas. Embalde eu protestava que ela era mais feia do que o elefante, menos perfeita do que uma leitoa. Embalde eu procurava esquecer, embrenhar-me no meu produto como a aranha no seu, embriagar-me com esses pensamentos de luxo, suspender-me a essas teias, atar as minhas arrobas ao vôo dessas borboletas extraterrenas. E, na verdade, nem agora consigo exconjurar aquele demônio.

UM ROMANCE

Entre os passageiros com os quais freqüentemente me encontro, pela manhã, há uma bonita mulata, não de olhar azougado, mas calmo e um pouco triste. O condutor cumprimenta-a com respeito, e trocam notícias de família. Veste-se com decência e modéstia. Sobe e salta sem ruído, instala-se no seu canto e não se mexe. Tem as mãos lisas e mórbidas, os dedos compridos e afusados; as unhas ogivais parecem recortadas em porcelana. Usa saias pouco acima dos tornozelos. Os pés, pequenos e arqueados, comprimidos em botins de couro, sob a massa movediça das saias, têm uma graça hesitante de pássaros timoratos. Será o pudor dos botins?

Essa criatura acabou por me interessar. A freqüência das suas viagens, a constância dos seus modos, a sua beleza um tanto fanada, o seu donaire involuntário de juriti meio desplumada e taciturna, a sua familiaridade familiar com o condutor, enfim o contraste entre o abafado concerto da sua pessoa e as mulheres brancas e chiques de braços e pernas ao léu, tudo me intrigava. A custo obtive umas informações vagas. Ontem, finalmente, encontrando-me com o prático de farmácia, o homem do Infinito, ouvi dele a informação cabal.

"Pois não a conhece? Não conhece, deveras, a Florinda?" - Contou-me toda a história de Florinda, a mesma história de tantas outras, tantas outras Florindas, e finalizou: "Hoje, uma senhora. E ainda bonita, não viu? Costura fora de casa. É companheira de um empregado aposentado dos correios, um casca, velho, reumático, bravo como um gato sarnento. Serve-lhe de irmã de caridade, de cozinheira, de mãe e de filha. E até de armazém de pancadas."

É aquilo de Amiel: Pas um brin d'herbe qui n'ait une histoire à raconter, pas un coeur qui n'ait son roman..., que é aquilo mesmo de Emerson: "Todo indivíduo tem uma história que valeria a pena conhecer, se ele pudesse contá-la, ou se nós lha pudéssemos arrancar". - Cada um carrega em si um epítome do drama humanal, tecido de trevas e de lumes. E cada um nos dá uma sensação de humanidade imensa, como cada onda pode dar a vertigem do abismo.

LENÇO PERDIDO

Quando eu acabava de saltar do bonde, esta manhã, ouvi atrás de mim um pchiu!, voltei-me, e um passageiro, homem do povo, esticando o braço até no meio da rua, me apresentou um lenço que ficara no banco. Apalpei os bolsos, não me faltava lenço nenhum. Tive pena de que o objeto não me pertencesse, porque pareceu-me que sem isso o meu agradecimento não encaixaria perfeitamente com a amabilidade do homem. Por um instante, pensei em aceitar o lenço, mas prevaleceu o austero dever, tirei o chapéu, agradeci, e fui-me. O homem ainda me pediu desculpa e ficou a olhar em redor, a ver se aparecia o legítimo dono.

Segui o meu caminho a fruir esta agradável impressão - que ainda há muito sentimento sadio e cordial por este mundo! A honestidade do ato, valha a verdade, não era grande. Os objetos transviados são quase sempre restituídos, quando de pouco importância. Mas a galantaria do gesto! Linda coisa, a galantaria. A honestidade, afinal, é uma obrigação. Tem um princípio passivo. É uma astúcia do egoísmo socializado, que evolveu para virtude, como o réptil se fez pato. Mas a galantaria é soberana: impulso livre, ação de luxo e primor, dom incompulsório, fantasia espontânea do coração, scherzzo garboso e supérfluo da vontade senhora de si mesma. - O excesso da medida justa vale a medida inteira.

Ia eu a pensar estas coisas aprazíveis, num passo vagaroso de quem vê que carrega borboletas no ombro ou no chapéu e não quer afugentá-las. Ao entrar num café, dei com o homem do lenço na minha frente. Notei que tinha o nariz vermelho. Sorriu-se, descobriu-se e, inclinando a cabeça para um lado: - "Seu doutor, não tem aí uns nicolaus que lhe sobrem, para eu tomar um pingado?" Dei-lhe os nicolaus.

CANUDO-DE-PITO

A manhã, hoje, era uma festa, e o meu bairro, todo em manchas aéreas e frescas de paredes claras, telhados vermelhos, jardins verdes, morros azulegos e violáceos a derreterem-se na distância como caramelos, me divertia como uma paisagem refletida numa bola de cristal. Eu não tinha senão olhos, enquanto o bonde corria. "Corre mais devagar, bonde do diabo! que assim como vais se me atrapalha tudo. - Corre mais depressa, bonde do inferno! que assim lentamente a desfilada das coisas mal se liberta da rigidez e do peso."

De repente, do meio da grande nuvem escura de um velho bosque, saltou como de um capulho, uma nuvem amarela, a fronde arredondada de uma árvore de ouro. "Olhe, que lindo! "(disse eu ao meu vizinho mais chegado, o Sr. João Cesário da Costa, capitalista, quarenta e oito anos). "Veja aquele ipê!" O meu vizinho deu uma olhadela e informou friamente: "Canudo-de-pito".

O fato de se tratar de um canudo-de-pito, e não de ipê, madeira de lei, influía decisivamente na reação da sua sensibilidade ante aquele quadro fugente e alucinatório. O mundo, para ele, reduziu-se a uma coleção de conceitos, ou a um dicionário ilustrado. Costa não foi composto para comunicar diretamente com as coisas, no absoluto momentâneo e original da sensação, nesse largo e surpreendente aquém da idéia e do pensamento, mais maravilhoso e menos triste do que o Além por onde vagam os Fabianos.

A civilização cada vez mais afasta os homens do contato imediato e regenerativo das coisas sensíveis. Só as enxergam de longe e de viés, através dos tipos, modelos, noções, definições, poeira brumosa de abstração, sob a qual a intimidade fluente e jovial do mundo se desvanece, e a alma encantada da criação foge como um Ariel zombeteiro. Diante de uma paisagem, não vêem a paisagem, mas uma coleção de objetos e de efeitos conhecidos e explicados, formando um conjunto visual de acordo com meia dúzia de normas laboriosas. Diante de um ser vivo, desarticulam as partes, (como se um ser vivo, como se as coisas tivessem na realidade partes) examinam, medem, subdividem, espedaçam, e cada ato desses decorre de uma idéia feita, de um critério preconcebido, de uma prefiguração normativa, de uma série de operações mentais anteriores ou presentes. A grande descoberta instantânea tornou-se impossível. O delicioso milagre só se revela a quem confia, franciscanamente, na luminosa estupidez do seu instinto e dos seus sentidos, e ingenuamente se lhes abandona, como o pássaro se deixa librar nas suas asas.

Por isso, um imenso repositório de beleza jaz inexplorado e ignorado no mundo e na vida. Quanta mulher feia por definição não é por natureza uma coisa formosa! Quanto rosto irregular, escabroso, macilento, não guarda, um poucochinho mais além desses acidentes, dissimulado como um seixo branco no fundo de um rio, uma harmoniosa, surpreendente disposição fundamental de linhas, de relevos e de contornos! E a quantidade de beleza que não se vê porque o objeto em si mesmo é desprezível ou repugnante! Um charco é uma imagem intelectual e oratória de dissolução, de paralisia, de morte, de decadência; é um foco pestilento, uma chaga aberta na terra, tapada de moscas, de vermes, de batráquios: um horror "por conseqüência". Uma cobra - puh! medonha! Entretanto, olhemos para isso tudo como uma criança, com a atenção e a curiosidade nuas de uma criança que não conhece nada, não sabe nada, não teme nada. O charco talvez nos apareça, cheio de azul, como um buraco da terra sobre um abismo sem fundo, todo lavado de claridade e povoado de numes joviais. A superfície da água, aqui lisa, ali borbulhante, além com placas e refegos de nateiro grosso, ora arrepiada pelo vento, ora quebrada por um bicho que se mexeu, toda betada de sombras movediças e de reflexos morrentes, golpeantes, explosivos, filiformes, maculares, difusos, - como se andasse ali a dissolver-se uma taxada de luminosidades, de negruras e de cores, pode ser um retalho fresco e maravilhoso de beleza arrancado ao monturo da realidade intelectiva.

A cobra, essa é positivamente um objeto encantador. Vê-la enrodilhar-se é apreender a nitidez perfeita da imagem, aliada quase paradoxalmente à cambiante contínua. Vê-la caminhar é ter a impressão de um liquido que se solidificou conservando a propriedade de escorrer.

Vai tão sutil e estreitamente adaptada aos altos e baixos do terreno, que se diria que a cobra não existe, é um simples movimento ondulatório do solo, um fragmento funiforme de sismo, uma estilha perdida e deslizante de terremoto. Esse corpo sem membros parece também não ter ossos, e apenas se percebe que é formado de anéis ou forma anéis à medida que se move, e que esses anéis se desmancham, mal se desenharam em outros que vão desvanecer-se de igual maneira: um devaneio maluco objetivado.

É um pau que se fez cipó e um cipó que parece querer voltar aos enlaces e aos balanços com as ramas. Irritado, arroja o bote com a fulminante rapidez e a fatalidade mecânica de um galho seco atirado pela raiva súbita da rajada. Como se tivesse barbatanas e asas invisíveis, bóia, nada, voa pela superfície da terra, e, quando se diria que lhe vai fugir, mergulha por ela dentro.

Vejamo-la em repouso: é uma obra esquisita de tapeçaria, com desenhos tão bem arabescados e cores tão bem distribuídas, que os nossos olhos se espreguiçam como ela e, como ela o nosso prazer se enrodilha e se esquece nas suas próprias roscas, e sonha.

Disse Boileau, sentenciosamente, como sempre:

Il n'est pas de serpent ni de monstre odjeur,
Qui, par l'art imité, ne puísse plaire aux yeux,

- mas quais são os monstros odiosos para os meus olhos? não têm ódios nem amores. Tudo é natureza, tudo é espetáculo, tudo é necessário, tudo é expressão da multiplicidade sem fim na unidade substancial do infinito mistério e da infinita beleza.

No meio desse infinito, que nos cerca, nos trespassa, nos convida, vivemos um tanto à maneira daqueles dormentes estatelados nas ruas, nos palácios, nos pátios, nos jardins, nos mercados, nos templos e nos bosques do conto oriental. Príncipes, vizires, xeques, mercadores, ganhões, - todos alheios à magia do espetáculo colorido e móbil do mundo, eles próprios mero espetáculo para os olhos de um triste fugitivo e da sua amorosa e assustada companheira.

RUFINA

Se eu fosse Rufina, hoje recostado no banco do bonde, enquanto um céu muito lavado se arqueava sobre todas as coisas, e um grande desejo de amor e ventura abrolhava nas almas, que teria feito? Teria pensado naquele passageiro desconhecido que me arrancara aos braços da morte; ter-me-ia lembrado com infinito carinho daquele homem tão corajoso e tão tímido, e teria refletido que por força ele devia ter um grande coração e uma alma adolescente.

Pensaria, outrossim, que ele provavelmente era solteirão, pois os homens casados não são assim tão solícitos, ou pelo menos tão tímidos com as damas. Pensaria que ele devia viver só e melancólico, habitando uma pensão inóspita, ou uma casa de família onde ansiasse rodeado de intimidades e ternuras que não eram para ele. E tanta coisa mais!

Entretanto, quem sabe lá o que Rufina àquela hora pensaria! Pensaria nalgum namorado vulgar, suavemente grosseiro e agradavelmente chato. Ou talvez estivesse com ele, mãos nas mãos, olhos nos olhos. Esta idéia me perturba e me desalenta. Aquela mão rósea e mole ficaria tão bem na minha, ossuda e pilosa! Aquele braço torneado encaixaria tão deliciosamente ao redor do meu pescoço! E eu me sentiria tão ufano e pacificado, como um gato no borralho, ao calor do seu corpo e do seu coração! Poderíamos estar aqui juntos, ela bordando tranqüilamente um pano de mesa, uma almofada, ou lá o que lhe desse, e eu, quieto, a esta secretária, bordando as notas felizes de um memorial de venturas brandas, a interrompê-lo de quando em quando para dar um ósculo à minha gata.

Mas aquela pestinha é lá capaz de sonhar por esta mesma partitura!

LOUVA-A-DEUS

Tivemos hoje, à ida, um inesperado companheiro de viagem. Não sei quando nem como se aboletou no carro; só foi notado ao levantar o vôo do chapéu de um cavalheiro velho para ir pousar no seio de uma senhora gorda, copiando a abelha da pequena ode de Anacreonte. A senhora gorda enxotou-o, num gesto de susto muito gracioso, como convinha ao sexo. O bicharoco, executando um rápido vôo plané, foi aterrar no ombro de um rapaz elegante. Este se apresentava para lhe desfechar um tiro com o dedo médio armado em aríete, quando ele se passou para as costas de um homem distraído, onde se deixou e o deixaram ficar.

Uma vaga de hilaridade desencadeou-se no bonde ao toque das asas daquele forasteiro. Todos lhe acompanhavam as evoluções com sorrisos. E alguns manifestavam na cara uma curiosidade lorpa, como se estivessem diante de um invento completamente novo. Porque essa hilaridade? Problema complicado e escuro. Lembro-me de Bergson, mas não vejo como aplicar ao caso a sua teoria. Até nova ordem, penso que o riso proveio apenas de que o bonde não é veículo para passageiros dessa classe; de que o lugar habitual onde imaginamos o louva-a-deus não é o bonde, não as ruas ladeadas de prédios, calçadas de pedras, atravancadas de carruagem e caminhões, riscadas de fios de metal e pontas de cimento, - e de que os passageiros sentiam, ou melhor, não sentiam, mas tinham necessidade de deixar ver uns aos outros a impressão de desconcerto ou desconveniência que o transviado lhes produzia.

De fato, a mecânica do riso assenta no irreprimível instinto de comunicação próprio do homem. Como o pranto, o riso é uma forma de linguagem, em grande parte inconsciente, destinada a comunicar o incomunicável, a exprimir o inexprimível, o que não se pode, não se sabe, não se quer ou não se pensa exprimir por palavras ou por gestos que lhes eqüivalham. (Se é certo que rimos e choramos a sós, também é certo que falamos conosco mesmos - e todo pensamento é diálogo interior - sem que por isso possa negar-se o caráter eminentemente, social da linguagem articulada, cujas origens supõem fatalmente troca, relação entre indivíduos, fixação coletiva de sinais sonoros). A mímica do pranto e do riso nasceu provavelmente da necessidade de se solidarizarem e coligarem os ânimos, na horda primeva diante do perigo, da contrariedade ou do benefício comum que iam encontrando pela frente. Seria um elemento de coesão sublimável. Uma circulação rápida de psiquismo coletivo. Com o tempo, isso se teria refletido e entranhado no indivíduo, até assumir uma sorte de vida inferior, independente. Mas a inconsciência do seu mecanismo interindividual aí está para lhe atestar as origens gregárias. - Somos ovelhas que se vão apenas destacando do rebanho por ligeiras diferenças de pêlo, de dimensões ou de andadura; mas a alma da ovelha pertence mais ao rebanho do que a ela própria.

E se tudo isto estiver errado? Não importa. Para um simples passageiro de bonde, as idéias são como os bilhetes de loterias: é preciso jogar em muitas, para ter probabilidade de acertar em alguma. E ainda o melhor é não acertar. Criar fama de rico é uma das mais graves maçadas que possam cair sobre quem não necessite de tanto numerário. Responsabilidade social muito pesada. Admiradores. Compromissos. Facadas, amabilidades, invejas, intrigas, amofinações... Que bom travesseiro, a pobreza!

A mim, o que me fez sorrir diante do louva-a-deus foi o riso dos outros, tão saudavelmente natural e estúpido. E foi também o próprio louva-a-deus, natural e bobo como esse riso.

O louva-a-deus é talvez um simples broto que de repente se animou, mexeu as suas folhazinhas tenras mal transformadas em asas, saltou, olhou o mundo em torno com os dois olhitos esbugalhados que se lhe acabavam de pôr - e esqueceu-se do papel que vinha representar. Todo trangalhadanças e todo indeciso, na sua irrepreensível casaquinha verde, é como um mascarado tanto que não tem coragem de ir ao baile nem sabe se há de voltar para casa, e fica a estatelar-se macambúzio pelas esquinas.

Desconfio agora que o louva-a-deus talvez fosse um broche que um artista primitivo, das cavernas ou das palafitas, modelasse,- no barro verdengo de algum açude, dando-lhe, por inabilidade e por fantasia, uma feição de monstro quimérico e grotesco. Um dia, a senhora Natureza, num momento de nervos, confundindo-o com os seus modelos infelizes e inacabáveis ter-lhe-ia comunicado o sopro da vida, lançando-o fora; "Enfim! sume-te, diabo!"

Outra hipótese. Esse e, com esse, muitos bicharocos parecem ter sido produzidos pela artífice quando ela ainda não podia desprender a imaginação dos liames do concreto. A minhoca teria sido tirada de uma raiz de tubérculo. A serpente, de uma haste de foraminífera. O besouro foi talvez copiado de um caroço de mamona. O elefante originar-se-ia de uma pedra viajada, do período glaciário, quer por acaso se tivesse vindo suster em cima de outras pedras menores e espaçadas. O lagarto, de um estilhaço de pau nodoso rachado pelo raio. Os peixes não teriam vindo da sugestão de um cardume de folhas polpudas caídas de grossas plantas aquáticas? E o morcego? O morcego foi de certo imitado de um pequeno guarda-chuva esfrangalhado pelo vento. (Contudo, não estou seguro da existência pré-histórica do guarda-chuva).

Só depois, muito depois, a Artista se libertou das formas anteriores para as inventar novas e mais perfeitas - o galo, esse objeto de luxo, o cisne, esse sonho de paz e perfeição, o gato, essa pequena mistura de inocência e de malignidade, a mulher... Ai, a mulher! complexa obra de fantasia terna, cruel e humorística: cisne, galinhola e gata. Rufina, meu amor, eu adivinho que tu és isso tudo!

Tive também um acesso de ternura pelo coitado do meu louva-a-deus, perdido entre paralelepípedos e almas, na cidade poeirenta e dura, longe do fluido verdor fresco das moitas e dos aguaçais. E lembrei-me do meu tempo de menino, lá muito longe (muito longe, muito longe, num outro mundo que já nem sei se existe!), onde o louva-a-deus se conhecia por cavalinho de Nosso Senhor e onde me divertia com outros pequenos a caçá-lo, para o ver fazer a sua oração de mãos postas e para lhe amarrar um cordelinho a uma das patas traseiras.

Vi os agros lavrados, grandes remendos postos ao manto das lombas, com estrias roxas de terra e bordados verdes de planta nova. Vi a vegetação mole e tufada dos grotões por onde a água corria e ofegava, como rapariga surpreendida nua. Vi o empastamento violáceo-azul-fumaça dos morros distantes. Vi o risco sangrento do caminho velho através da solidão virgiliana dos pastios. Senti o cheiro salubre das macegas. Ouvi ranger a velha porteira pesada e pensa, ao pé do valo esboroado, entupido de gravatás, à sombra do pau-d'alho fechado e baixo como uma cabana triste. Ouvi ecos errantes de vozes grossas a chamarem pelo gado, de cantigas de lavadeiras no córrego, do jorro da bica a referver no esqueleto negro da roda de água. E havia no meio de tudo isso, ainda mais distante, mais real e mais irreal, mais vivo e mais sonhado, um toque fremente e forte de buzina de caça, lá pelas barrocas e pelos cerrados desertos, um toque ululante; ansioso, resoluto, que estraçalhava o silêncio com ímpetos heróicos e melancólicos, de desafio e de saudade.

Transpassou-me a alma hereditária de lavrador desenraizado um sentimento agudo de solidão e de incomunicabilidade, e fiquei a olhar para o louva-a-deus na ânsia com que alguém, perdido em terra estrangeira, se poria a amar de longe um compatriota com quem houvesse topado por acaso. (Assim as nossas ternuras vêm sempre acabar em nós mesmos. Aí, senhor duque de la Rochefoucauld!)

Viajava a meu lado um moço atochado de conhecimentos exatos. Disse-me, com certa indignação, que o louva-a-deus, mante réligieuse, é um dos seres mais sinistros da criação viva: a fêmea tem o indelicado costume de devorar o incauto esposo logo no festim de bodas (ao contrário portanto de outras que comem os seus aos bocadinhos, a vida inteira).

Eu já sabia disso pelos Souvenirs do Fabre; mas o moço tinha prazer em me instruir, e eu não lhe quis aguar essa satisfação não de todo inocente, mas tolerável. Não lha tolerei por generosidade, mas porque não queria jogar com ele a cena dos dois pedantes que se travam de sabenças.

Tenho pavor a essa espécie de gente, (aliás estimável, posto que daninha) a essa espécie de gente que vive a verter sabidelas decoradas por todas as juntas, como pipotes de melado em que não se pode pôr o dedo sem sentir o pegajoso das escorrências. São sucursais vivas da tipografia. São jornais parlantes, cheios de reportagens, de ciência feita, mas sem artigos de fundo e sem rodapés literários. A ciência, para eles, é o refugium, desde que se reconheceram anêmicos de bom senso, de imaginação, de sensibilidade e privados dessa divina capacidade de simpatia cósmica, que faz as almas verdad.... Mas não vale a pena repetir Nietzsche.

SANFONA

Tivemos hoje concerto de sanfona durante a viagem da tarde. O homem tocava bem, e tocava de tudo.

Amo de coração estes artistas humildes, que têm a paixão da arte, com o mínimo possível de cálculo, ou sem nenhum. São, na sua imperfeição, mais artistas do que muitos outros mais hábeis, mais cultos, mais refinados: não procuram na arte senão o seu prazer - sem pensar em proveitos; e exercem-na com a simplicidade e a inocência de quem pratica os atos mais ordinários da vida. Dão generosamente e anonimamente o que têm, o bom e o mau, o certo e o errado, sem presunção e sem torturas, e vão seguindo o seu caminho. Quem gostar, goste à vontade; quem não gostar, perdoe; e, se não quiser perdoar, é o mesmo. Que boa, alegre e higiênica maneira de ser artista! Durante vinte minutos, o homenzinho da sanfona foi o único que veio deitar um pouco de alegria purificadora na alma fechada e amarrotada de quarenta e tantos passageiros.

Pela minha parte, Deus lhe pague, frater desconhecido!

EMBRIAGUEZ

Viajou hoje no bonde um homem embriagado, meio dormindo. Quando chegamos ao ponto, no centro, todos descemos, e ele ficou. O condutor foi interrogá-lo, ver porque não descia. Sacudiu-o. "Ó amigo, já chegamos! Ó amigo..." O bêbedo abriu um olho, ergueu a cabeça, e deixou-a tombar de novo sobre o peito. "Ó amigo! então não desce? Ó amigo..." O ébrio tornou a abrir um olho, fixou-o no condutor, e murmurou: "Toca o bonde." - "Mas olhe que tem de pagar outra passagem! Ó cidadão! está ouvindo? Tem de pagar outra passagem!" - "Sim!" berrou o homem. "Sim! eu pago outra passagem! Toque essa porcaria! Siga! Eu pago quanto você quiser. Olhe, tome!" E estendeu ao condutor uma prata de dez tostões.

Quando o condutor lhe restituía o troco, o beberrão, já manso, fez um gesto trêmulo de repulsa amigável. "Guarde para você, guarde lá... ouviu? Mas olhe aqui, condutor, mande tocar mais devagar nas curvas... sim? É só o que eu lhe peço. Mais devagarinho nas curvas!" E o ébrio recostou-se, acomodou-se, cruzou as mãos sobre os joelhos e fechou os olhos, como se estivesse na mais fofa poltrona, debaixo de um teto amigo.

Explicou então o condutor porque é que ele queria menos rapidez nas curvas: é que já havia levado um meio trambolhão do bonde abaixo, numa delas. Assistiam à cena dez ou doze curiosos, que muito se divertiram. Nunca há maior divertimento do que ver um homem em situação degradante, e "risível", que por via de regra é risível porque seria própria para entristecer.

E porque o estado de bebedeira é degradante? Já sei: é pela mesma razão por que é risível, é que diminui o homem ex abrupto, o reduz à condição de autômato, de um autômato e amarfanhado. Mas há tanto outro gênero de embriaguez que passa como se não fosse degradante nem ridículo! Por que?

Os efeitos são os mesmos: um homem sem a posse completa de si próprio, sem sequer essa espécie de dignidade animal que consiste na harmonia espontânea dos movimentos com as "finalidades" naturais, da estrutura; um homem que se torna inconveniente ou se torna perigoso, que tem de ser aturado nas suas importunações, ou carregado como uma coisa, ou conduzido como um animal, ou que extravasa, dá escândalo e faz desordem.

Há a bebedeira de morfina, éter e similares, e das paixões políticas, profissionais e confessionais, a da ambição doentia, a do exibicionismo patológico; há a embriaguez moderna da atividade exacerbada, que, como todas, enfuria, desfalca, mecaniza e deforma a natureza do homem. E há a embriaguez da sensualidade que se desdobra nesta epidemia universal de ostentação, de festas e de fantochismo dançante. E há a embriaguez do automóvel, embriaguez típica.

O paciente começa por tomá-lo aos poucos, e às vezes arrenega, às vezes duvida entre si se é bom ou se não será. Mas volta, e prova mais uma vez, mais outra, e mais outra, aumentando as doses. Para encurtar, não tarda que seja um viciado. Torna-se um automobilimaníaco. Anda quase constantemente automobiliagado, com períodos lúcidos de mais em mais breves, em que trata de seus negócios e participa da vida íntima de sua família.

Quando está em crise, empalidece, enrija-se, tem os olhos parados, o lábio descaído e branco. A pequena velocidade é a fase alegre e brincalhona: ele pirueteia, ziguezagueia, faz gracinhas com a máquina, assusta o transeunte pacífico, dirige pilhérias aos guardas. A velocidade média é a fase da provocação e do "leve o diabo". A velocidade máxima média é o estado delirante: a consciência acaba de desaparecer, desaparece tudo, ou tudo se reduz a um sonho agônico, em que a personalidade tem a abafada impressão de se libertar das prisões materiais e voar no vento e na luz.

Embriaguez detestável como qualquer outra. Mais do que qualquer outra produz vítimas, que não são unicamente os enfermos, conforme todos os dias revelam as crônicas. E, como muitas outras, deixa suas heranças à descendência.

Entretanto, não se cogita de uma lei seca para esse flagelo.

A verdade é que o homem é um ser que se embriaga. Não importa a maneira: o essencial é embriagar-se. Morfina, éter, coca, ópio, vinho, grappa, whisky, gin, vodca, cerveja, automóvel, jogo, esporte, dança, negócios, arte, política, notoriedade, glória, ódio, tudo lhe serve, contanto que lhe permita, conforme os temperamentos, sentir a falsa plenitude de um desaforo interior, embora à custa do desbarate e da quebra do rico, vário e harmônico plano natural da construção humana.

Dizia Tolstói que o homem procura no álcool e no tabaco o entorpecimento do Eu consciente. E é verdade. Mas o álcool e o tabaco não são os únicos mananciais dessa felicidade mutilante. Há-os em barda por aí, todos produzindo efeitos exteriores análogos, todos proporcionando o mesmo resultado interior, quer se trate de um cigarro ou de um trago, quer de um veículo atirado como um buscapé ou de uma paixão ou preconceito absorvente, que se cultiva: reduzir o campo dos cuidados, abafar uma porção de vozes que balbuciam dentro de nós, prevenir um mundo de preocupações e de angústias possíveis, apequenar a nossa humanidade, pôr entre nós e o cariz oceânico da vida um véu que o esfume e nos tranqüilize.

Não nos ríamos do bêbedo, ríamo-nos de nós. Todos temos o nosso copo, e todos parecemos obedecer ao conselho de Omar Kayyám: Sonha que já não és, e sê feliz.

És que? Homem, cá para o nosso caso.

BOA PROSA

Boa prosa, o Antônio Palhares. É curioso como há indivíduos inteligentes, perspícuos e engraçados, perdidos na multidão que não aparecem nas crônicas impressas, nem nas volantes e sonantes da gente que se conhece. De repente, surde-nos um da obscuridade e da indeterminação do vasto mundo que desdenhamos e ignoramos, - e é um bicho de compreensividade, de senso, de espírito! Palhares é assim.

Conversei com ele hoje pela manhã, e nem sei dizer como me divertiu. Valeu por um livro novo que eu abrisse e folheasse, vendo as gravuras, o índice, os títulos de alguns capítulos, alguns relances de páginas. Quanta novidade, quanta frescura, quanto inesperado, e também quanto sabor de sinceridade libérrima e despreocupada, nos seus dizeres de homem sem galeria presente nem futura!

Queixei-me a Palhares dos inconvenientes da notoriedade. Não por mim, que sou um obscuro chapado e contente, mas por um amigo meu, que é uma espécie de terça parte minha, o qual muito tem sofrido por via desse flagelo. O rapaz não pode mais isolar-se, meter-se consigo, perder-se na fecunda anonímia multitudinária que lhe permitiria o descanso, o recolhimento, a respiração livre, a remodelação dos hábitos, a cura das feridas sempre abertas pela esfregação mundana: é um escravo aflito e amarfanhado das relações, das amizades, dos compromissos, das idéias que outros formaram a seu respeito, das solicitações e dos estímulos que por isso lhe vêm de todos os lados; e então padece, e geme, e desespera, porque desejaria romper com o seu passado, deixar de ser o homem frívolo, o homem vento, o homem-inundação que tem sido, para ser um homem concêntrico e dono de si.

Palhares ouviu-me, ouviu-me, e, afinal, perguntou:

- "Mas esse moço é deveras uma inteligência sagaz, ou é uma dessas grandes inteligências bobas que há por esse mundo?"

- "Sagacíssima."

- "Pois não parece. Seria tão fácil libertar-se, isolar-se!"

- "É o que se afigura à primeira vista."

- "Precisa dos outros, efetivamente, para viver?"

- "Não; isso, não; tem a sua independência material bem segura."

- "Então, não compreendo. Por que não se retira?"

- "Impossível. Relacionadíssimo. Cheio de laços, que não se dissolvem senão quando novos laços os submergem: um homem que se procura, se aprecia, se quer, se disputa, se admira. Encantador. Como romper? Como ter a energia de quebrar brutalmente esses laços? Como repelir, quando se tem um coração brando, uma revoada de carinhos e solicitudes que nos cerca e nos assalta?"

- "Não compreendo. Para um homem se isolar, não há necessidade de movimentos bruscos, nem de fuga. Para fazer o vácuo em redor de si, gradualmente, docemente, não há senão isto: ser bom."

- "Mas ele o é. E depois, ser bom é mais um motivo para criar afetos e dedicações em redor de si."

- "Espere. Distingo. Ser bom, de uma bondade pedestre e regular, de fato, é um meio de criar afetos e dedicações em redor de si. Não é dessa bondade prática e hábil que eu falo. Eu falo da bondade íntima, profunda, plena e sossegada, que procura o bem nas próprias raízes do pensamento e da vontade, de forma que o pensamento e a vontade, quando se manifestam, já se manifestam como conseqüências exteriores, mortiças, frias, aguadas e, dir-se-ia, indiferentes de uma grande realidade latente e central que não cura de exterioridades. Compreendeu?"

- "Mais ou menos. Quer dizer uma bondade sentida, consciente, feita de compreensão e de piedade, mas que não tenta esforços por se mostrar e por atuar cá fora. Porque sabe talvez que toda exteriorização é espetáculo e todo espetáculo perverte."

- "Mais ou menos isso!"

- "Mas por que pensa que aí estaria o meio de libertação?"

- "Ora, essa! meu amigo! Pelo que vejo, não conhece os homens. Os homens só nos avaliam, nos pesam, nos apreçam pelas nossas projeções exteriores. E essas projeções, para terem valor, se hão de articular com as necessidades, os desejos, as conveniências, as aspirações dos que nos rodeiam. Valem pela soma de utilidade e de cumplicidade que levam consigo.

Mas um indivíduo realmente e simplesmente bom é o mais desvalioso dos homens. É talvez uma árvore frutífera, mas que produz frutos quando é sazão, e fora disso não produz mais nada; ali está, no seu lugar, quieta, sem movimento, sem iniciativa, sem préstimo, sem solicitudes, sem graça.

Apenas dá sombra. Uma sombra igual para todos. Mas que importa aos homens uma árvore que dá sombra! A sombra aproveita-se, quando aderga, goza-se, saboreia-se, mas não se tem nenhuma gratidão para a planta equânime que não no-la reservou para nós, que a dará ao primeiro vagabundo que a procure. Assim, a árvore de boa sombra vive realmente isolada, cercada por uma densa muralha de impenetrabilidade própria e de alheia indiferença."

"Diga ao seu amigo que faça isso."

Palhares sorriu, pôs um confeito na língua e, a remexê-lo na boca, perguntou:

- "Quer jantar comigo?"

- "Obrigado."

- "Sem cerimônia. Temos hoje lá em casa um peixe que me mandaram do litoral, um esplêndido robalo. Presente de um amigo."

- "Tem amigos amáveis."

- "Mas, naturalmente. Prestei a esse um serviço de grande importância, que só eu estava em condições de prestar."

- "Gratidão, nesse caso."

- "Qual!"

- "Esperança de novo serviço..."

- "Talvez"

- "Afeto humano!"

- "Afetos verdadeiros e sólidos! Passam depressa, nada mais fugitivo, não há dúvida; mas verdadeiros e sólidos porque se firmam na realidade viva das relações úteis. Não há outra. Dentro da vida, da vida efetiva, da vida que se vive, não há outra. É isso. É assim. Mas quer ou não quer comer o bom peixe do meu amigo?"

RUFINA

Tornei a ver a minha Rufina, afinal.

Corria eu os olhos pelos passageiros, com essa curiosidade vaga, sem garra nem asa, que nos resta nas horas de fadiga. Vi num banco de trás o prático de farmácia, com um livro de Allan Kardec sobre os joelhos e a fazer gracinhas a uma criança, cuja mãe era uma guapa mocetona. Vi o simpático Berredo, inimigo da Medicina, médico amador. Benzi-me em espírito com a canhota, e desviei os olhos: dei com eles num banco todo ocupado por mulheres idosas e feias, não sei se mais idosas do que feias, e tinham os cabelos entre o grisalho e o branco amarelado. Mas a velhice é uma coisa venerável. Contemplei aquelas caras a ver se conseguia extrair de alguma delas a imagem reconstituída de uma beleza decomposta. Não o consegui. Teriam talvez uma espécie de beleza interior. Mas por que então não se revelava cá fora ao menos como o lume vermelho e mortiço de um forno velho?

Pus-me a passear os olhos pelo tejadilho, pela rua, pelas pontas de meus dedos. De repente, quem havia de descobrir! Lá no fundo, sentadinha entre uma preta gorda e um bigodudo vendedor de loterias, Rufina! a própria, a autêntica, a única, a olhar para mim, sorrindo como antiga conhecida - a boa criatura! Toda ela era uma só imagem de lindeza una e vibrante como uma interjeição.

Trajava de branco e tinha uma gola alta que lhe dava ao pescoço, ao ombro e à cabecinha redonda um quê dessa graça aconchegada e sólida, que se encontra nas frutas perfeitas e nos legumes viçosos. Mergulhei-me na figura de Rufina.

Nisto, veio de lá o prático de farmácia, marinhando pelo estribo. Alegou que me queria cumprimentar, e de fato realizou esse rito com a mais intempestiva lentidão. Relanceava os olhos para Rufina, uns olhos de emplastro, sob cujas apalpadelas a moça baixava os seus. Depois, saltou. - Lamentei sinceramente que não tivesse caído. Senti ganas de lhe saltar no rasto como uma onça atrás de um quati, e meter-lhe a garra pelo gasnete, e batê-lo pelo chão e pelas paredes.

Quando o bonde chegava à primeira esquina, o condutor subiu ao meu banco, que era o da frente, para repor em zero o relógio de marcação das passagens. Incomodado pelo intruso, passei provisoriamente para o banco imediato, dando costas à linda criatura. Tão depressa o condutor se retirou, voltei para o meu primitivo posto. Mas a moça tinha desaparecido. Saltara na esquina, que já ia longe.

Precipitei-me para a rua, corri para trás, inspecionei tudo, barafustei; nada. Sacudiu-me então uma tal intensidade de desespero e de cólera, que me pus a rir e a rilhar os dentes.

Foi este o dia mais negro dos meus últimos dez anos. Dei ponto na repartição, e fui fazer um passeio de bêbedo por bairros distantes e ignorados.

DELICADEZA

Testemunhei uma cena desagradável, que infelizmente não teve piores conseqüências.

Ia perto de mim um cidadão muito gordo. Luxuosamente gordo. Parecia carregar as banhas com a recolhida empáfia de um grão-sacerdote afogado em deslumbrantes vestes talares. Refestelava-se no banco, firmado nas enxúndrias das nádegas, como uma pesada bóia flutuante indiferente ao balanço das ondas. Exibia o ventre, que lembrava o hemisfério de um grande globo, como se de propósito desejasse que toda a gente lhe pudesse admirar aquela prenda. Aquilo era o seu precioso berloque de novo rico.

A certo ponto da viagem, surgiu do outro lado do hemisfério um moço magro e sutil, que procurava passar pela frente do obeso, mas hesitava ante a impassibilidade ou distração deste. Afinal, tocando no chapéu, perguntou-lhe, alto, com verrumante delicadeza: - "Cavalheiro, não lhe seria muito incômodo ceder-me um corredorzinho para eu passar?" O gordo zangou-se. Encolheu como pôde o fardo abdominal e, sacudindo a papada, os olhos arregalados: "Passe!"

O moço magro, atônito por um momento, depois inclinado a reagir, sorriu-se afinal, e disse entre dentes, relanceando um olho escarninho pela venerável barriga: - "Bolas! não estou disposto a brigar com meio mundo." E o gordo a resmungar: "O calcinhas! Esta sucia..."

A princípio não compreendi por que seria que o pançudo tanto se irritara. É que sou por natureza tardo de compreensão. Nada mais fácil de ver que o homem sentira espicaçado justamente por aquele excesso de delicadeza. Se o moço, passando, lhe tivesse empurrado de leve os joelhos, dizendo um seco e rápido "com licença!", e fosse tocando para diante, nada teria acontecido. O gordo levaria isso à conta de uma pequenina e desculpável grosseria sem endereço especial. Não já, assim a frase e o gesto do mancebo, que lhe bateram no toutiço como farpazinha particularmente preparada para sua pessoa. Ninguém gosta de se ver assim pessoalmente visado e distinguido nos seus pequenos tortos, que são mais ou menos os de toda a gente e devem passar sem exame e sem reparo.

Há uma causa mais geral, e é que o excesso de delicadeza leva uma dose de ironia, e a ironia ofende e revolta mais do que a rudeza. Não, como geralmente se julga, por penetrar mais fundo na derme do alvejado, mas pela desigualdade de armas. O homem desprevenido e "natural" não tem, nos seus encontros e lidas cotidianas, mais do que as armas de ataque e defesa que a natureza lhe deu, e delas se socorre como pode. O irônico é um mal intencionado, que carrega armas artificiais no meio de uma população policiada e pacífica. Viola a convenção em que a generalidade repousa. Quebra a regra consuetudinária do jogo da convivência. Onde outros se limitariam a usar das mãos e dos cotovelos, ele saca de um pequenino punhal e põe-se a esgrimi-lo com a destreza de um especialista de má-fé e de maus bofes. O adversário sente-se apanhado à traição, exaspera-se e, às vezes explode.

O sujeito extremamente delicado é, no fundo, um indivíduo que faz o pior juízo acerca dos seus dissemelhantes, e os trata com infinitos cuidados, como se lidasse com cavalos passarinheiros ou cachorros agressivos. Ou isso, ou então é que gosta de lançar engodos às almas incautas, para que se lhes abram e se lhes ofereçam em espetáculo. Todos os seus gestos estão impregnados de ironia, de uma ironia que nada tem com a dos homens compreensivos e sensíveis que já viveram muito, mas uma ironia feita de vaidade, de caborteirice e de secura de coração. Ele é o "homem de escol", "a criatura de exceção", fina, distinta, lixada, repolida, cheia de bicos e rendas, desgraçadamente obrigada a viver no meio de uma canalha tosca e molesta!

A antipatia instintiva que provoca é uma reação da vis medicatie social.

O que mostra mais uma vez como os movimentos instintivos podem eqüivaler a longas reflexões, e como a mentalidade coletiva pode chegar, sem raciocínio, aos mesmos resultados das lentas análises do psicólogo e do moralista., - De onde, também, o erro dos paradoxófilos, quando partem do pressuposto de que, para bem pensar, é preciso pensar contra os sentimentos do maior número.

O SONETO

Se eu tivesse de fazer perante o vigário uma confissão minuciosa, raspando as voltas mais fundas do meu ser, não encontraria de certo explicação para o fato de o soneto de Gabriela me haver tornado, hoje, ao espírito- não à lembrança apenas, ao espírito, à alma. Só posso dizer que, ao vir-me o condutor cobrar a passagem, nem o senti chegar, estava absorvido na segunda quadra.

A vida é um céu que uma só vez se estrela;
toda estrelada e rutilante a viste...

Não me satisfizeram estes versos, nem como idéia nem como forma. Chamar céu à vida é sempre extravagância; demais, um céu que só se estrela uma vez, não pode ser senão um céu de papel pintado. A construção "a viste" era ambígua para o ouvido. Por fim, o período não dava liga. Modifiquei-o:

Contudo, a vida forte boa e bela:
sorriu-te, tanto quanto lhe sorriste.

Podia servir. O diabo era a continuação. Eu não tinha, na verdade, a mínima idéia assentada acerca do caso psicológico de Gabriela, nem sequer sabia que forma e que alma teria essa emanação possível do meu cérebro. Ao contrário de Minerva ao sair da cabeça de Júpiter, estava completamente desarmada. E nem mesmo queria acabar de sair. As casualidades da versificação é que me diriam afinal o que eu houvesse de pensar a respeito. Grande coisa, a versificação.

Contudo, a vida foi-te boa e bela:
a vida te sorriu, tu lhe sorriste...

Dados estes dois versos, o campo de exploração restringia-se. O problema fixava-se em três incógnitas: x) dois decassílabos, em ela e iste; y) que desenvolvessem o pensamento começado; z) tornando possíveis os tercetos com um fecho reluzente e forte.

Hoje, ela te maltrata, e tu caíste.

Aqui, o verbo caíste (le mont est créateur) sugeriu-me espontaneamente este quarto verso:

caíste, pobre moça, na esperança!

Não estaria mal, se eu quisesse fazer humorismo. Bastava modificar de leve os versos antecedentes:

Outrora, a vida aparece-te bela;
acenou-te, sorriu. Tu lhe sorriste.
E a seus braços voaste. E enfim caíste,
caíste, pobre moça! na esparrela.

O mais engraçado desse humorismo é que a idéia em si é perfeitamente justa e muito séria. A vida, de fato, estende às almas jovens e sequiosas umas fatais urupucas, tentadoras e terríveis, onde elas se debatem e se magoam. Mas o "cair na esparrela" tornou-se cômico pela vulgaridade, e a vulgaridade é o sentido moral figurado. Sentidos profundamente imorais, estes sentidos morais, que apagam tudo quanto há de emoção poética e de pungente verdade humana em tantas metáforas enérgicas e felizes. - Como quer que seja, eu agora já queria bem à moça, como as mães já amam os filhos ainda no ventre, e detestei a idéia de impor à minha criatura um indumento grotesco. Nem que ela fosse real! Não, o soneto havia de ser afetuoso e nobre.

Outrora, a vida apareceu-te bela;
acenou-te, sorriu. Tu lhe sorriste.
E a seus braços voaste; e assim te viste
presa das graças lacerantes dela.

Ora, bem. Faltavam os tercetos. Estava a ensaiar-me para pescar os tercetos no vasto mundo das possibilidades ideais, quando o condutor me chamou ao mundo estreito das impossibilidades ordinárias:

"O senhor volta para trás?"

O bonde tinha chegado ao ponto final e ia recomeçar o giro. Saltei dele e do sonho (assim chamam os poetas a estes exercícios, que são os mais conscientes e espertos de quantos se possam imaginar) e corri à repartição. - Talvez que disto fique dependendo a inexistência de mais uma obra-prima na literatura nacional. Mas, quem sabe? Ego dormio et cor meum vigilat.

UM BORRACHO

O bonde vinha tão silencioso, ontem à tarde, como se por ele tivesse passado um sopro de solenidade histórica. Os passageiros, alinhados, taciturnos, pareciam compenetrados de representar algum papel de responsabilidade. Ou dir-se-ia que iam jogar a própria vida numa linha de fogo, logo ali adiante.

A certo momento, entrou um bêbedo, que mal se sustinha nas pernas, como um fardo que trepasse a custo arrastado por uma corda invisível. Mas falava sem parar e ria-se numa grande jovialidade enternecida e patusca. Tudo lhe ria, a barba crespa e grisalha, repartida em duas pontas, os olhos pequenos e azuis, como dois botões de esmalte, o chapéu amolgado e caído sobre a orelha, os longos caracóis de cabelo bamboleantes sobre a testa como gavinhas de aboboreira, e que se haviam despregado da pastinha rala, transversalmente colada por cima da calva. Ria a próprio casaco de pano encorpado, cujos bolsos atafulhados se arredondavam como bolsas, e ria ainda mais o lenço vermelho amarrado ao pescoço, com as pontas a esvoaçar como bandeirolas.

Falando e rindo, o homem caiu sentado em cima de duas mulheres, que recuaram espavoridas "Scusate, signore!" E tirou largamente o chapéu com a mão que segurava o cachimbo, cujas cinzas se espalharam por cima das cabeças vizinhas. "Scusate, io sono un pó allegro, Oggi ê festa!" E disparou a cantar.

O condutor veio lá do fundo como uma flecha e, com o sobrecenho mais autoritário que pôde compor:

"Ó aquele, aqui não se canta!"

- "Non si può. Bene, bene. Non si può. È giusto. Si. Stà benissimo... Eh! condutore, mi dà un fiammífero?"

E, enquanto acamava com o polegar o fumo negro contido no pipo, cantou, numa voz que podia bem ser a de um ex-barítono:

- "Io voglio un fiammifero!"

O condutor voltou a ele e, com redobrada energia no cenho e na voz:

- "Já lhe disse que não pode cantar!"

- "Eh!... io già sabia che non si può cantare. Domandavo a lei un fiammifero."

- "Não tem fiammifero. Você vai é já para baixo, se não fica quieto."

- "Pra basso, io?! Dio b...! E che ho fatto io, conduttore... O conduttore! che ho fatto io per esser messo giu... in mezzo alla strada?"

O homem largou o cachimbo em cima do banco, remexeu os bolsos com as mãos bambas, remexeu, e não encontrava o dinheiro. Tirou um lenço, uma laranja, duas metades de charuto toscano, um pedaço de barbante, uns restos de amendoim, uma medalha, um jornal; e resmungava: - "Come no! io tenho dinero. Si! Anche della carta moneta... Vucê truca cinque milla, conduttore? Ebbene, aspetti. Si, ió tenho... eh! Un pó de pazienza, caro."

A muito custo, deu com a nota num dos bolsos do colete, junto do relógio de prata, enorme, que previamente sacou e auscultou. Ao retirar a cédula, fê-lo num gesto de triunfo; ergueu senhorilmente a cabeça e, estendendo a mão com o dinheiro ao condutor irritado, esboçou um canto jacundo e nobre como um ofertório, em voz retumbante: "Ecco, o signor, prendetela!"

O condutor não lhe cobrou a passagem, mas fez parar o carro e obrigou o cantor a descer, com tácita aprovação dos demais passageiros. Quando se viu na rua, o expulso abriu os braços para protestar, mas cambaleou e sentou-se no chão, gritando sonoramente, à maneira de insulto e de ameaça: "Portoghese! Vado dal presidente dello Stato!"

Mas o bonde já ia longe. E os passageiros riam-se. E ria-se o condutor. Precisamente nesse momento, eu ficava sério, e aquele homem alegre e inofensivo, posto do veículo abaixo como uma lata velha, me começava a interessar. Era a vítima simpática de um lote de imbecis. E eu no meio destes.

Um homem alegre, fosse qual fosse o combustível da sua alegria, devera ser olhado como em certas civilizações primitivas se olhavam os doidos, criaturas sagradas, ou como os gregos consideravam os devotos delirantes de Dionísios, condensadores momentâneos desse mistério de jovialidade e de exaltação que em certas épocas circula através das coisas, e preme os úberes da terra, e desata as ofertas do céu.

Minha alma ficara lá para trás, junto daquele homem assoado para a rua pela austera comunidade do bonde. E minha alma lhe dizia:

Ri, ri, ri, minha vitima, meu irmão. Brinca, tagarela, traquina à tua vontade. Frui sem vergonha e sem cuidado este parêntese divino de liberdade e de loucura alegre que se abre na miséria soturna da tua vida. Ri, ri, meu irmão, minha vítima.

A tua risada não me alivia, mas vinga um pouco a minha ânsia recolhida de libertação impossível, pobre, torturado escravo que sou, mesquinho escravo das Regras, dos Horários, dos Regulamentos, dos Códigos e das Necessidades criadas.

Ri, folga, berra, cabriola, papagueia, pragueje, insulta! E canta! canta, nessa efusão de lirismo obscuro que sobe do mais fundo da nossa alma bruta, expressão sem palavra de alegria vital, inconsciente, expansiva, cósmica, alegria do gafanhoto que salta e voeja, da maritaca gritadeira e gloriosa, da água que foge às guinadas fervendo e brilhando, do fogo que dança o bailado da labareda, de tudo que não é esta nossa desgraçada alma superficial de bicho domesticado e diminuído.

Ri, ri, ri, com todo o teu ser, todo o teu sangue, a tua carne, para além ou aquém do Bem e do Mal, Homem! pobre Homem, bom Homem, meu irmão.

Ri, ri, ri, até que estoures de repente com o riso, como a cigarra a cantar, e acabes assim na mais bela das mortes, fulminado por uma explosão de vida!"

Agora, ao rememorar esta minha ode, com a pena entre os dedos, já não me parece que tenha justificado bem a embriaguez, que afinal é um vício detestável. Embriaguez por embriaguez, é preferível uma consciência clara e um sentimento profundo e sutil das realidades. Também isto é uma espécie de bebedeira; mas lúcida, infinitamente matizada; e tem todo, o atrativo de um vício artificial.

"Sede duros, meus irmãos!" pregava Zaratustra, "e a verdade é que a dureza é um ingrediente da vida e uma condição de ordem."

Nada mais saboroso do que o diálogo de Tolstói com a sentinela do Cremlim. Esta enxotava um mendigo de certo lugar onde não se permitia a permanência de estranhos. Tolstói aproxima-se, vê, sofre, e aborda o soldado, perguntando-lhe se não conhecia os versículos do Novo Testamento em que se recomenda tratar o próximo como a um irmão. Retruca o militar: "E o senhor não conhece o regulamento da praça? Pois eu o conheço."

Palavra profunda! A primeira necessidade é cumprir cada um o seu dever particular, o seu dever concreto, positivo, limitado, pequenino.

O dever particular às vezes é duro, como pedra, como prego, duro como pau, mas é dele que se faz a ordem, a ordem que é edificação, que é obra, que é abrigo e desfrute, oficina e palácio, lavoura e escola, a ordem que é civilização. Os deveres mais gerais são também mais flutuantes: discutem-se; oscilam com a temperatura do sentimento, com as marés da idealidade. Mas o dever imediato e cotidiano é fixo e indiscutível: não há senão obedecer-lhe. E a obediência é a segurança e o alimento de cada um e de todos. Coisa insignificante, um homem que regularmente cumpre os seus deveres de cada dia: coisa majestosa, uma nação em que todos procedem assim!

O ideal é talvez juntar ao livro de Tolstói a espada do soldado. Em todo caso, eu daria ao soldado uma fria aprovação, e a Tolstói um abraço.

MANUAL DE COZINHA

Arranjei hoje com um contínuo um Manual do Perito Cozinheiro, para ler durante a viagem, à falta de outra leitura edificante, instrutiva ou deleitável.

Trago a cabeça cheia de leituras de jornal, e já não me diverte nada, pelo contrário, a sarabanda cotidiana das crônicas, estudos, fantasias, comentários, bisbilhotices e descomposturas. Tenho a impressão de já haver lido isso tudo não sei quantas vezes, desde a minha vida anterior, nos remotos pródromos do jornalismo com Mr. Théophraste Renandot. É incrível como as coisas atuais caducam depressa, como as novidades são velhas, como os fatos extraordinários são vulgares.

É verdade que a impressão de perpétua velhice só se prova agudamente quando se vai descambando ladeira abaixo dos anos em enta. Mas isso apenas demonstra que o espetáculo é comprido e só se pode bem apreciar depois de lhe ter visto um bom pedaço.

O fato é que estou fazendo quaresma a respeito dessa carne-de-vaca dos prelos. Ontem, li no bonde o Livro de são Cipriano, conhecimento que me entreteve como um fruto proibido, e que valeu ao dono do volume, servente da repartição, um pacote de fumo Veado. Hoje, um dos meus colegas devia emprestar-me as Noites da Virgem, mas afinal parece que teve receio de que eu lhe extraviasse essa "mimosa jóia", e declarou-me que a não havia encontrado; mentira, pois é o seu livro de cabeceira.

Arranjei-me porém com o contínuo, que fora da repartição é cozinheiro praticante, em ocasião de festa e regabofe, e dentro da repartição aprende a arte, decora receitas e dá consultas. Seja registado em sua honra, que não preenche apenas assim o seu horário oficial: também serve o café e faz o jogo do bicho.

O Manual fez-me o efeito refrescante de um bastão de cristal japonês passado pelas têmporas em hora de dor de cabeça. Nunca eu havia provado a tal ponto a maravilhosa utilidade das leituras inúteis. A parte referente ao preparo do peru com farofa e de outras aves domésticas e selváticas parecia escrita por um estômago inspirado, tanto garbo havia na variedade dos termos técnicos, na escolha das palavras mais precisas e sugestivas, no emprego dos adjetivos mais emanteigados e olorosos, enfim na composição de um estilo todo suavemente tostado e pururuca.

Li tudo, mas com absoluto desinteresse; por um puro ato de vontade, sem que nada me obrigasse ou seduzisse, ou me prometesse o mais remoto benefício. Singular prazer, cujo valor só depois completamente reconheci. Nem sequer me era dado pensar no aproveitamento de alguma receita, porque todos os pratos de que eu gosto já são perfeitamente executados e são de sobra para uma rotação conveniente dos menus; a tal ponto que ao saborear o frango assado no domingo, já eu sinto um pouquinho de saudade da torta de palmito da quinta-feira, e vice-versa, e assim por diante.

O que havia de bom nessa leitura era o emprego tenaz da vontade num objeto indiferente, ótimo exercício; era, depois, o esquecimento de umas amofinações, porque é impossível conciliar-se a leitura atenta de uma série de receitas de assados e cabidelas com o remeximento de espinhos espirituais.

Era, finalmente, a entrevisão liminar de um vasto mundo desconhecido, o mundo da Copa e da Cozinha, da pastelaria e das Artes afins; um mundo de ocupações e preocupações, de atividades e de idealidades, com sua história, seu tesouro tradicional, sua literatura, sua arte, sua ética, sua ciência; um mundo que aí fervilha tão perto do meu e ao qual eu andava alheio como se ele fosse Marte ou Saturno!

Esta percepção da impermeabilidade dos diferentes planos da vida me calou fundo na alma, e eu me senti ainda mais pequenino.

Se eu amanhã fizesse (mera hipótese) um poema forte, ou construísse uma teoria de mecânica, ou propusesse uma nova e fecunda maneira de interpretar a história, nada disso teria a mínima repercussão no mundo da Cozinha e da Copa; nem um eco sequer do meu nome chegaria até lá. A preparação do peru com farofa continuaria a mesma; ou, se se modificasse, havia de ser por ação de um dos íncolas, inovador de talento; e a alma do artista viveria em todo esse mundo largo mais viva e mais venerada do que a Divina Comédia ou o Discours de la Méthode ou o Novum Organum cá pelo nosso. E a sua glória não sofreria contestações nem eclipses, proclamada cada dia, através de tempos sem conta, por milhares de bocas verídicas e gratas!

E o nosso pobre mundo comum é todo assim, feito de mundinhos concêntricos, que se articulam sem se confundir E nós, ai de nós! pretendemos viver "cosmicamente!"

RUFINA

Encontrei-me hoje com o boticário, a quem não via desde a última vez que vira Rufina.

"Quem é aquela moça", lhe perguntei, "que, há coisa de duas semanas, viajou conosco neste bonde? Aquela morenota de olhos grandes e úmidos? Aquela de bonitos dentes? Aquela espigadinha, de branco, a quem você, saltando do carro, deitou uma olhadela xaroposa?"

Fabiano custava-lhe recordar-se. Vincou a testa, cravou os olhos no tejadilho, levou a unha do indicador para entre os incisivos, com a boca aberta.

- "Uma gorda, de cabelo ondado?"

- "Nada. Não ofenda."

- "Não me lembro... Espere. Uma alta, de nariz grande?"

- "Já lhe disse que era morena, pequena, engraçada."

Fabiano agitou-se, como que para sacolejar a caixa das lembranças, atirou uma perna para cima da outra, curvou o busto, agarrou o queixo, carregou o cenho. "Diabo!" De repente, riu-se, deu-me uma tapona no joelho e exclamou:

- "Já sei! Uma cabrochinha, não é isso?"

Conservei-me calado, mandando em espírito, o idiota do boticário a todos os mil demônios. Aliviado, voltei-me para ele, frio:

- "Desistamos, oh amigo Fabiano José de Figueiredo Alves."

- "Figueiredo, não; Azevedo."

- "Ou isso."

Eu estava convencido de que Fabiano não queria era lembrar-se de Rufina. Impossível que se tivesse realmente esquecido dessa criatura maviosa e rara. Conhecia mulheres como um recenseador: uma gorda, uma alta, uma parda, fora muitas outras que não referiu; e não se recordava da única que valia a pena! Grande ordinário.

Percorremos umas quatro ou cinco quadras em silêncio. Eu nem sequer olhava para a cara de Fabiano. A certa altura, perguntou-me se sabia o nome da moça.

- "Rufina."

- "Hein?!"

- "Rufina."

Fabiano olhou para mim e disparou a rir.

- "Já sei, meu caro, já sei!"

- "Mas porque essa risada?"

- "Ah! já sei, meu amigo, já sei. .. Olhe, ela nunca se chamou Rufina. Qual Rufina, nem meia Rufina!... É boa! Ela é Augusta, meu caro amigo. Augusta, entendeu? Rufina... é boa! quiá, quiá, quiá..."

"Mas.. então, conhece-a?..."

- "Pchê! Há muito tempo. Uma rapariga magra, moreno-mate, com o nariz levemente rebitado, o queixo saliente, não é isso? Conheço muito. Chama-se Augusta, mora ali para as bandas do cemitério. Boa fazenda coitada!"

Desmoronei. Só ao cabo de longos e dolorosos minutos pude reconstruir-me um pouco, firmar-me um pouco em cima de mim mesmo, e perguntar com voz sumida:

- "Mas, então, esse nome de Rufina?"

- "Muito simples. Bestice do coronel Ferrão, um velho meio pancada - bem pancada, aliás - que tinha a mania de lhe dar esse nome."

- "E por que?"

- "Por nada, burragem dele. Gostava de trocar os nomes, fazia isso com toda a gente. Tinha um sobrinho, o Bentoca, Bento Felizardo Ferrão, homem respeitável, atacadista ali no centro: chamava-lhe Esmeraldino, até diante dos empregados, na loja. O Viana, era para ele Pascoal, um dia; outro dia, era Bonifácio. A mim, quis-me uma vez batizar por Crispiniano, mas eu, pan! barrei-o logo: Às suas ordens, seu Januário. Danou-se - ora, imagine: danou-se, o bestiaga! - e não falou mais comigo."

Emudeci. Fabiano continuava, mas já não o entendi daí por diante. A versátil indiferença do boticário chocava-me como uma sem-vergonhice irritante, de sujeito sem alma, sem o senso piedoso e comovido da miséria humana. Mas Fabiano afinal era um bom homem: isto é, um tipo fútil e feroz como soem ser os homens de juízo.

Oh! n'insultez jamais une femme qui tombe!

Mas não é isso, oh poeta, não é isso o pior. O horrendo é esta indiferença, esta sorridente indiferença, esta familiar e brincalhona ferocidade, aérea, difusa, impalpável, com que se considera um ser humano, com que se fala de uma pobre mulher - logo de uma mulher! de uma triste mulher e do seu destino, de uma mulher bela, graciosa e miseranda; de uma mulher que tem toda a massa de que se fazem as mães e os anjos da terra, - e com uns olhos tão grandes, tão úmidos, tão luminosos!

- "Mas porque é que queria saber" indagou o boticário, depois de uma pausa.

- "À-toa, Fabiano."

- "Pois olhe, é fácil."

Encarei-o de um modo que devia ter-lhe parecido esquisito, pois calou-se e ficou sério. E não se falou mais nisto.

JUSTIÇA

Íamos hoje para a cidade na marcha habitual, nem muito rápida, nem propriamente vagarosa. Circunstância notável, se bem que ordinária - o bonde não correu nem por um instante fora dos trilhos. Entretanto, chocou de repente com um automóvel, e surgiu uma grande discussão a respeito de se saber a quem tocava a culpa, se ao motorista, se ao chauffeur.

Entrou em função o juiz que há dentro de cada indivíduo, e as sentenças divergiam.

- "Foi esse negrinho estúpido," dizia um, indigitando o chauffeur.

- "O culpado é esse louco desse portuga," asseverava outro, referindo-se ao motorista.

- "Cadeia com eles, é o que eu vivo a dizer."

- "Qual! só a pau."

- "Por milagre não houve coisa muito pior: olhe como ficou a máquina."

- "Foi pena que não ficasse ainda mais escangalhada, era menos uma."

- "Mas o bonde podia bem ter parado a tempo."

- "Não podia, aqui é um declive."

- "Seu guarda, o culpado é o chauffeur."

- "Não, seu guarda, o culpado é o motorneiro."

E cada juiz era também um partidário, ou do lado do homem do bonde, ou do lado do homem do automóvel. Por simpatia física, por espírito de nacionalidade ou de raça, por disposição mais favorável a uma das classes de automedontes, por ter ou não automóvel, por ter ou não ter um parente chauffeur ou automobilista, por mero palpite, cada um propendeu imediatamente para uma das bandas.

Mas, valha a verdade, havia também homens imparciais, por exceção. Um destes, abanando a cabeça, e afastando-se do burburinho, me ponderou tranqüilamente:

- "Ora, ora! Quem foi, quem não foi... Eu o que fazia era pegar nos dois e socá-los no xilindró: é aí, seus danados! Esta corja..."

MODÉSTIA

Franklin Penha dera-me hoje a impressão de um grande fátuo. Viu-me no bonde e cumprimentou-me com excessiva amabilidade, com regozijada surpresa, como se tivesse descoberto em mim, de repente, algum encanto inédito. E eu nem sequer tinha a barba feita. O motivo não tardou a aparecer. O que Franklin pretendia era capturar a minha atenção e boa vontade para uma notícia de jornal que trazia recortada, no bolso, e lhe pesava como uma barra de ouro. A notícia era mais ou menos a seguinte:

"O Senhor Doutor Franklin da Costa Penha, conceituado advogado do nosso foro e futuroso cultor do nosso passado, acaba de ser nomeado sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Estado de..., por indicação, unanimemente aprovada, do eminente historiógrafo brasileiro Sr...."

- "Parabéns, bichão."

- "Oh!"

Apesar desse oh! Franklin estava realmente satisfeito, mais talvez do que o seu venerando xará depois que eripuit fulminen, etc. Guardou o retalho na carteira, quase a afagá-lo com as pontas dos dedos, como se fosse um aéreo tecido de seda; arrumou a carteira no bolso e, confidencial e grave:

- "Não; eu, de fato, para ser franco, fiquei muito contente. Eu sou assim. Tenho ainda alguma coisa do menino de colégio, que se ufana dos prêmios recebidos. Puerilidade. Pura, insofismável puerilidade. Eu podia contar-lhe esta nova assim com um arzinho de quem não ligava, negligentemente, como por uma lembrança de acaso. Podia ter-lhe dito que o fato me agradava por este ou por aquele motivo nobre; pelo prazer que teriam lá em casa, pela recomendação que estas distinções representam no seio de uma burguesia bobalhona... enfim qualquer coisa por esse gosto. Mas tudo isso não seria senão hipocrisia. A verdade pura é que fiquei contente por mim mesmo, pela própria distinção em si; contente deveras, cheio de contentamento como um balãozinho de goma elástica cheio de ar. Eu sou assim. "Mas também, amanhã ou depois, já estarei resfriado; nem me lembrarei mais de que fui eleito sócio correspondente. Depende de eu querer alcançar uma outra tetéia que no momento me seduza."

Franklin dizia-me estas coisas com tanta simplicidade e com um lume tão sincero nos olhos, que tudo lhe aceitei como vera confissão. E absolvi-o. Não, ele não é fátuo. É talvez mesmo o oposto do fátuo, um grande modesto.

Modéstia, afinal, não é isso? A verdadeira não é aquela que se proíbe a mínima expansão de vaidade. Os indivíduos que se proíbem a menor demonstração de vaidade são quase sempre os mais vaidosos dos vaidosos. Pretendem, sonham, invejam, sofrem e gozam tanto quanto os outros, com a única diferença de que põem abafos a isso tudo e, além de tudo, ainda querem fruir a reputação de ser extraordinariamente modestos. Há mesmo cidadãos que devem a maior parte do seu renome à sua modéstia ou à sua preguiça. O pouco que dão de si, dão como passatempo, como capricho ou brinco de um momento, como efeito de imposições alheias, como necessidade ocasional. Por si mesmos, não, não querem nada, querem sossego! Mas o seu maior gozo é quando os admiradores exclamam: "Ah! se este safado se resolvesse a trabalhar!" Vaidosos dobrados, têm várias vaidades lá dentro, presas e gordas como perus de galinheiro, e ainda por cima se deliciam, epicuristicamente, com a vaidade de não ter nenhuma vaidade, que é a mais vá, a mais falsa, a mais loucamente ambiciosa de todas.

O modesto verdadeiro não é o que se envergonha das suas vaidades, é aquele que lhes dá expansão, reconhecendo-as porém com bonomia como tais, sem lhes emprestar outros nomes, nem estar com rodeios e mentirolas. Somente, possuir a clara consciência delas é automaticamente reduzi-las. Dar-lhes expansão, assim, é rarefazê-las. É torná-las exteriores, superficiais e passageiras, como um suor, como escamazinhas eruptivas da pele, como secreções, coisas que a economia orgânica de um corpo são, normalmente engendra e rejeita. Uma limpeza, uma "catársis", um arejamento, um alívio.

Gozar as próprias vaidades com sincera e inocente imprudência é o melhor meio de lhes sentir a vacuidade, de as tornar inócuas, de acabar por desprezá-las e perdê-las. Permitir-lhes que levantem o vôo é deixar que se vão embora.

Alegrar-se alguém abertamente com os seus pequenos triunfos é um modo amável de se confessar bem gratificado. Saudável fusão de bonomia, conformidade e desprendimento: modéstia, enfim; a boa, a legítima, a pura. A única.

Todo o mal da vaidade está nos sentimentos e nos cálculos que se lhe ajuntam, que a mascaram, a pervertem, a envenenam, a entranham na alma, hipertrofiando-a, dando-lhe por vezes a figura hidrópica de virtudes austeras, dessas que merecem lápides em latim. - É assim que se formam esses veneráveis cavalheiros amargos que santamente odeiam todas as manifestações brilhantes e aladas da vida, esses grandes desambiciosos que se vingam em todo o mundo de não poderem confessar ambições, esses perpétuos caluniadores que enxameiam e zumbem, como varejeiras pesadas e tontas de sânie, em redor de cada desgraçado cujo nome não ficou soterrado como o deles na própria impotência.

Nietzsche teve razão - o que algumas vezes lhe acontece por maneira fulmínea - quando disse que as paixões, em seu estado puro, são boas. Apenas haverá nisso exagero. São boas porque são naturais, porque são o próprio homem. O que as torna más, corrompendo-as envilecendo-as, é a hipocrisia, que as dissimula intensificando-as no entanto; que as enfeita por fora, como serpentes, mas dá-lhes o veneno e a insídia; que as oculta e as desvia de seus fins imediatos, claros e geralmente saudáveis, para as pôr ao serviço de afetos nobres e de longos, tenazes e engenhosos ressentimentos.

Menos ousado, Augusto Comte apenas reconhece à vaidade - desejo de aprovação - direitos de cidade na sua moral sociocrática; mas...

... Mas que Nietzsche! que Comte! que Fulano ou Beltrano! Antes de todos eles, o Eclesiastes havia proclamado, para todo o tempo, que tudo é vaidade neste mundo.

Dessa e de outras afirmações se tirou apressadamente a ilação de que o cristianismo nascente votava um ódio entranhando à vida. Mas ele não fazia senão pôr o dedo na latejante verdade, na dolorosa e redentora verdade. Era uma libertação e um alívio que ele trazia: tornaram-no um torvo condenador da vida. Era uma reação contra o formalismo, a pedantaria, a artificiosidade hipócrita do judaísmo literalizante e manhoso, uma revolta do espírito, uma insurreição de veracidade heróica, alegre triunfal da nossa miséria".

Sim, tudo é vaidade; sim, o homem é mau; sim, somos o verme da terra. Pois, sejamos vaidosos, sejamos maus, sejamos vermes, francamente, de cara descoberta, de alma leve, com a lavada e impudente sinceridade da flor e da fera, à luz do Sol e à face de Deus, na perpétua humildade de uma confissão total e tranqüila! Não queiramos converter velhacamente a larga realidade comum da nossa pobreza em falsas opulências de exceção. Quem se abaixa é que será exaltado: só quem se reconhece tal qual é, ou tal qual somos, achará em si mesmo a verdadeira força purificadora e ascensional, que não mente nem quebra. Confessemo-nos sinceramente a Deus, e Deus a todos os humildes perdoa e sustém.

Como é que a tola perversidade humana pôde converter a clara e benéfica fonte de liberdade e de alegria, que há no fundo dessa viril visualização cristã da vida, nesta coisa sombria e horrenda, nesta mascarada de mistificações, neste pesadelo de atrozes artifícios, neste abominável Santo Ofício de idealismos hipócritas e peçonhentos e de mútua espionagem, que a sociedade instituiu dentro de si mesma e carrega no seio como um rolo esfervilhante de víboras?

Jesus claro, natural e harmonioso como a Verdade, até fabricou vinho em Caná para a jovialidade simples dos homens...

A modéstia é uma virtude imensuramente prezada pelo grande número. Todos a veneram. Todos a exigem dos outros. Por que? Mas, evidentemente, por ciúme e inveja. Não há ninguém mais modesto do que as velha chupadas, arrependidas... de não haverem pecado. - Não podendo suprimir os méritos de quem os tem, quer-se que ao menos o possuidor não os reconheça, ou finja não os reconhecer; quer-se diabolicamente aguar, estragar, atormentar com dúvidas, com acanhamentos, com terrores e com escrúpulos o prazer natural, irreprimível e capitoso que ele possa provar. Assim, mais ou menos, falou Zaratustra.

A moral social é uma formidável conspiração de todos contra cada um, para o triturar, perverter, o desvirilizar, o reduzir a um ser lamentoso e tortuoso, um aleijado sofredor, grotesco e malfazejo. O pátio dos Milagres!

O envaidecido enrosca-se e enclavinha-se em si mesmo. Em vez de lançar ao vento as suas pequenas fatuidades e libertar-se delas, ele as recolhe, as acumula, as afunda lá dentro, e as recoze, e as cultiva em sigilo, como um fabricante de venenos, com toda a sorte de cautelas, de temores, de desculpas, de artifícios, de equívocos, de dissimulações, e aí temos uma franqueza quase inocente convertida, pelo farisaísmo da virtude, numa podriqueira secreta!

Só o indivíduo que experimenta prazeres de vaidade, sem se enganar sobre a natureza deles, assistindo a essas experiências do sentimento como um lúcido espectador de si mesmo, só este é capaz de modéstia. Se algum há que não os conheça, esse não é propriamente um modesto, é um que nasceu com uma falha psicológica, como outros nascem privados da vista ou com um pé atrofiado. Não tem mérito algum. Tem um defeito de nascença.

A modéstia é a vaidade que sorri de si mesma. E nesse sorriso vai o quantum satis de contra-veneno.

A boa modéstia é a vaidade que sorri de si mesma para não se rir das outras, e que às vezes arde e se sublima na chama do sorriso - como um balão de papel se destrói e desaparece na própria chama que o eleva.

A vaidade paga regiamente as suas culpas. Quantos artistas crucificados na sua obra, vertendo sangue e clarões!

A boa modéstia é aquela que doma as suas vaidades e as subjuga ao domínio de uma paixão forte e bela, como os tigres que puxavam o carro de Dionísios.

A serpente, às vezes, gasta o seu veneno em botes aos raminhos que bolem ou às sombras que passam, e assim se torna inócua ao picar uma rês ou um homem. A vaidade é muitas vezes como a cobra.

À vaidade parece dever-se também uma quantidade de horrores: assassínios, roubos, atrocidades, suicídios. Na realidade, ela desempenha apenas o papel de um purgante orgânico da comunidade social. Em muitos casos, se a uma só causa se podem filiar coisas tão complexas, é a modéstia que deve ser responsabilizada. Convertida em mandamento irretorquível, comprime e abate a natureza humana e a obriga a esses longos desvios e absurdas transferências da paixão inextirpável, a vontade de se afirmar. O excesso de modéstia pode prolongar-se até ao cinismo, e à delinqüência.

UMA ROSA

Ganhei uma rosa e uma experiência. Deu-me aquela, no bonde, um homem velho, rude e chambão. Contraiu a afeição das flores já entrado em anos, depois de desenganado de feminilidades há muitos. E eu tinha o amor das flores na conta de um puro reflexo de sentimentos sexuais, de uma ondulação distante do culto da mulher.

De fato o é; mas também pode ser outra coisa, como me prova este velho puído e tristonho, que viu amanhecer em si o encanto das rosas quando já iam muito longe as derradeiras fagulhas do outro amor.

Quem sabe se ele põe agora neste afeto um afã meio inconsciente de recuperar o tempo perdido para o coração? Como quer que seja, revelou-me como a natureza, contra toda lógica e toda expectativa, pode achar saídas novas e elegantes para as situações mais abatidas e ruinosas. Há nela uma capacidade virgem e indefinível de com que não costumam contar os analisadores de almas, que pensam desmontar-lhes as peças como a mecanismos, e não fazem senão jogar com esquemas e conceptos.

Tudo, neste homem, indicaria uma carreira fatal para o embrutecimeno e a prostração. Idade, doenças, decepções, rupturas, arrancamentos, saudades, rancores, desesperança. Devia acabar no desânimo e na tristeza aparvalhada do animal que procura um recanto esquecido para morrer. Pois, nada disso. Viu ainda florir em si, de repente, um novo amor e uma alegria, uma doçura e uma esperança novas. Uma nova forma de ingenuidade fresca e gentil. Uma ressaca de mocidade.

Dir-se-ia que todas as suas mágoas e misérias se haviam convertido numa energia clara e imprevista de nascente gorgolejante Que todo o cisco do seu passado, em montão, a consumir-se ao sol e à chuva, fecundara a terra e dera-lhe sombra e umidade para que brotasse lá em baixo uma semente ignorada, e que a semente se fizera broto, e o broto crescera e atravessara os destroços apodrecidos para vir oferecer à luz a flâmula verde de uma frondezinha viçosa.

A vida vive em nós! Ai, se nos convencêssemos bem de que é a Vida que vive em nós... A Vida, senhora eterna de todas as germinações.

AINDA A ROSA

A rosa que o meu amigo velho me dera anteontem ainda estava hoje bem passável. Olhei-a, pela manhã, quando lavava o rosto, e achei-lhe um encanto dorido de mulher bonita que, em pleno solstício de encantos, de repente se vê marcada pelos primeiros gorgulhos do tempo.

Esborrifei-lhe um pouco de água, e disse-lhe: "Que será de si amanhã, minha rosa?" As rosas sabem falar, e para ouvir e entender o que elas dizem não é preciso amar alguma senhora, como, segundo o poeta, se requer de quem deseje ouvir as estrelas. E a rosa, com soberba indiferença, respondeu: "Que será de mim? Olha esse grosseiro antropomorfismo, néscio animal! Então tu julgas que nós outras somos feitas da tua massa? Para mim e minhas irmãs todas as voltas do mundo são as mesmas. Eu, amanhã, não serei nada que tu aprecies, mas aí ficam infinidades de rosas desabrochadas e por desabrochar. E todas elas são eu mesma, porque eu sou todas, e não desapareço, nem sucumbo".

Muito bem, muito bem. Em todo caso, como rosa individual, a minha durava bastante. Malherbe assinou a esta flor, como prazo fixo de vida l'espace d'un matin, e entretanto é geralmente sabido que ela pode durar dois ou três dias, e mais. Mas também está geralmente convencionado que, para os efeitos poéticos, há de durar uma só manhã.

Verdades duplas, assim, há muitas, há tantas que o mundo está cheio delas.

A borboleta, símbolo da volubilidade na poesia, é com efeito uma excelente imagem da constância, porque só faz indefinidamente a mesma coisa.

A abelha, essa dizem que é o tipo do ecletismo intelectual ou sentimental que saqueia a corola de todas as flores; na verdade, é a representação mais fiel da inflexibilidade de princípios, pois que não visita senão as flores que lhe forneçam matéria-prima, e delas não quer senão a pequenina dose de matéria-prima que possam dar.

O gato considerado como um animal de caráter independente, vive de fato na estreita dependência própria dos parasitas, não sabendo senão estar nas cozinhas e nos telhados; gravitando em redor da paparoca preparada.

À palmeira, chamam-lhe esbelta e soberba, ou altiva, ou senhoril. Não há o que se lhe oponha, porque, realmente, a gente pode dar às coisas os adjetivos que quiser, não havendo contrariedade declarada; mas é muito de notar que, assim como a palmeira é esbelta e senhoril, também poderia ser senhoril e esbelto um espanador de cabo comprido, ou uma vassoura do tipo antigo, trastes estes havidos como sumamente prosaicos.

O boi, símbolo da força, é um colosso tão frágil que passa da mocidade à decrepitude em meia dúzia de anos, e possui muitíssimo menos energia ativa do que uma formiga ou uma pulga. E a águia, emblema do gênio, porque tem asas e vive nas alturas, é menos inteligente do que uma galinha e nem sofre comparação com o castor, que passa a existência no fundo dos vales e no lamaçal dos rios.

Enfim, não se contam as verdades, duplas que todo o mundo enxerga, ou poderia enxergar, mas deliberadamente separa e torna reciprocamente estanques. E não só no que respeita ao mundo objetivo, mas também no que se refere ao próprio domínio subjetivo da experiência moral.

A economia é uma virtude, quando se põem sobre ela os óculos simpáticos da generalização poética; a economia, em seus casos concretos, é sempre uma indecenciazinha de que nos envergonhamos e que satirizamos nos mais.

"O amor é a mais bela e a mais santa das coisas desta vida": mas ninguém torne esse conceito como preceito porque se arrisca a ser apedrejado na praça.

"A calúnia é o fel das almas ignóbeis": na realidade, a calúnia é um vício tão generalizado e tão familiar como o do cigarro; e quem não o cultivar está no perpétuo risco de passar por idiota ou por "jesuíta".

Mas, afinal de contas, esses desdobramentos da verdade são úteis, porque correspondem a duas tendências fundamentais do espírito humano: a que visa a adaptação deste à natureza, e a que procura a sua adaptação à sociedade.

A primeira procede por via de indagações meticulosas e serenas; a segunda marcha por meio de conceituações imediatas e sínteses arrojadas.

A primeira é lenta, dificultosa e fatigante; a segunda é rápida, leve e encantadora.

A primeira fornece exercício a uma minoria de cabeças, especializa e desmembra funções, e como que pulveriza a continuidade e a fluência do real numa infinidade de corpúsculos gelados; a segunda comunica impulsos a toda a sorte de mentes, aproxima-as, harmoniza-as, estimula a imaginação e a simpatia, dando a todas a mesma concepção aproximativa das coisas, deformante mas agradavelmente fácil, ampla e satisfatória.

A primeira prepara o viveiro das verdades exatas e necessárias de amanhã; a segunda alarga o domínio das verdades agradáveis e convencionais provisórias para uns, perpétuas para a maior parte.

Instinto de saber, instinto de poesia. Dois irmãos inimigos, que não podem viver um sem o outro.

Posta de parte essa parlenda, o fato é que a resposta da rosa mais me enamorou dela. Enfiei-a na botoeira, apesar de já meio fanada. - Precisei, para tanto, de um pouco de decisão e atrevimento, pois nunca uso flores comigo, nem mesmo frescas. Audácia de carneiro. Atrevimento de cágado.

Instalado no bonde, semicerrados os olhos, e sentindo na face a carícia de uma pétala pendente, instiguei a minha interessante companheira a falar ainda, antes que algum golpe de vento ou algum encontrão a despojasse da sua voz feita de cor e perfume. Não se fez de rogada.

"Não sabes, amigo? Tal como aqui me vês, sou filho do conúbio do homem e da natureza... Tanto devo o ser ao solo, ao sol, ao ar, como ao espírito, à arte e à mão humana.

Sou um produto da terra e da civilização: duplamente flor de cultura.

Sou ao mesmo tempo a glória de Flora e a mais perfeita das flores artificiais. Tendo o viço hereditário das rosas selváticas e a aura humana das rosas de papel e de tecido, armadas por magras mãos de operárias tristes, mãos febris de moças namoradas.

O homem faz-me, cheio de suas vaidades, seus desejos, suas ambições, seus sobejos de carinhos, seu saber, seu gosto amável, paciente e caprichoso. Assim, uma infinidade de forças diversas vêm-se coordenando e vêm colaborando, através dos séculos, na seleção das minhas formas, dos meus tons e dos meus olores - florindo e reflorindo em mim.

De mim, pois, aprende, homem tolo e ingrato! a olhar a tua humanidade não tanto na sombria confusão dos seus galhos e ramas, como na vária e fugitiva permanência das suas flores, ou no perpétuo esplendor das suas graças transitórias.

Ama-a com todos os seus vícios e brutezas, com todos os seus primores e pulcritudes.

Não há vícios, não há primores, há só o homem. O homem e nada mais. O homem inumerável, incomportável e indefinível. O homem que te ultrapassa no espaço e no tempo, e cujos últimos limites partem do centro da terra e vão perder-se nas constelações.

Perdoa-lhe tudo, tudo. Perdoa-lhe simplesmente. Sem gestos e sem frases. Perdoa-lhe mesmo na cólera e na angústia. Reserva-lhe ao menos uma promessa de perdão no infinito, até para o que não possas, até para o que não devas perdoar.

Se tudo, nele, coopera na produção destes milagres de melindroso e incorruptível prestigio!

Milagres em que o fugitivo se confunde com o permanente, e o encanto de uma hora é um sorriso dos séculos.

Passam as catedrais, esfarelam-se os granitos e os bronzes, desagregam-se os impérios, e as nações dissolvem-se, mas eu permaneço na minha deliciosa insignificância, Como a última confidência de ternura e de beleza que as gerações legam umas as outras através dos abismos do tempo.

Sou a obra mais duradoura do homem. Não há ferrugem nem verme, nem guerras nem sinistros que me atinjam.

Vê como uma coisa assim pequenina e branda vem a ser o único triunfo comum das energias contraditórias derramadas pela face da terra!

Eis-me aqui, doce como um afago, leve como uma asa, breve como um sonho, mas forte como o que permanece e perdura, imorredoura e essencial como a lágrima e como o sorriso, esses dois resumos humanos da infinita comédia, e da infinita alegria do universo...

Serve-me com os olhos, aspira-me, grava-me na alma. E sabe que nunca faltarei ao pé de ti, se o quiseres.

Busca-me, achar-me-ás. Eu só desapareço de teus olhos para que em ti se renove a ânsia pela minha presença.

Toda a perene agitação do mundo parece não ter outro fim que produzir uma espuma de rosas. Nada tão ao alcance da tua mão.

Colhe, beija e sorri.

Nesse minuto estarás num pináculo da vida e num ponto luminoso da eternidade.

Eu sou a Rosa, eu sou a Rosa, a beleza e a graça fugentes, a doce filha da terra vil e do homem desgraçado..."

UM FIO DE CABELO

Aquela moça espigada que entrou no bonde com o ímpeto ágil de um gafanhoto e ficou sentada ao meu lado, nunca imaginaria que fosse causa possível de uma pequena tragédia.

Entrou, sentou-se, tão isenta, como diria o Camões, tão longe de mim que sentia a irradiação das suas calorias! Viçosa, inocente e jocunda como um cacho de flores de resedá arrancado ao galho pela manhã, tinha a afilada silhueta de uma girl esportiva e a despachada simplicidade de um rapaz. Tirou a espécie de boina que trazia na cabeça, agitou o nevoeiro de fogo do cabelo, ajeitou-o com as mãos, de leve, como se lhas queimasse, e minutos depois, repondo o gorro, partia, num outro salto de gafanhotinho brincalhão.

Jeunesse de visage et jeunesse de coeur!

Quando cheguei a casa, tinha no ombro um fio de cabelo, um fio de chama. Descobriu-o a criada, com um sorriso ingênuo e perverso. Pegou nele, de intrometida, examinou-o à luz da janela, e ia deixá-lo cair quando eu, não me podendo conter, exclamei: "Deus a faça careca, Manuela!" Manuela olhou-me com cara de surpresa e desapontamento, como a pedir explicação. Não lha dei, limitando-me a assoviar uns compassos da Marcha de Cádis, para não lhe deixar a impressão de estar zangado, e retirei-me para o meu quarto.

Na verdade, estava zangado. Aquele ato da pobre mulher apertara a mola ao mecanismo das minhas melancolias. Pus-me a considerar os frutos de suspicácia, de bisbilhotice e de malignidade que a moral produz nas almas simples; e de reflexão em reflexão achei-me de repente imerso, mal sustendo a cabeça de fora, na imensurável e irremediável miséria da bicharia humana.

E aí está como aquela menina, inocente como o é a Lua, dos raios que deixa cair, não esteve longe de ser causa de um desaguisado doméstico. Ao mesmo tempo que alisava o cabelo, num movimento de mãos e numa dança de dedos leve e aérea como um gorjeio, poderia estar agitando a corrente de dois destinos ignorados e preparando uma pororoca longínqua.

Ai! por muito pobre que seja a imaginação dos malfazejos, os distúrbios que ela consegue promover são pequena coisa diante do mal que todos fazemos uns aos outros pelo simples fato de existir.

Não há pior acidente do que ocupar um lugar no espaço. Um simples fio de cabelo caindo de uma cabeça pode ser para alguém como o raio destruidor partindo do punho de Arimã. Vivemos assim uma eterna e terrível mitologia. Participamos da natureza dos deuses, ao menos para o mal. Só para o mal. A vida é a angústia do terror difuso e permanente.

RETICÊNCIAS

Encontrei-me hoje no bonde, depois do almoço, com o Nicolau Coelho. Como eu lhe dissesse, um dia, que lera com prazer a sua crônica sobre finados, desse dia em diante se aproximou de mim, e não me vê sem que me venha apertar a mão. Ainda hoje pagou a minha passagem.

Conheço Nicolau desde menino, fui amigo de seu pai, professor gratuito de um dos seus irmãos, e nunca se julgara obrigado a usar de cortesias comigo. Passei a ser alguém para ele no dia em que lhe elogiei uma crônica, a ele que tantas e tão aplaudidas tem escrito, a ele carregado de glórias.

Nicolau, vendo-me no último banco, ergueu-se do seu e desfechou-se de lá. Sacou de cinco tiras de papel e disse, com modéstia:

- "Isto é curtinho... Gostaria que lesse, preciso da sua opinião."

Fixei os meus olhos nos seus.

- "Precisa da minha opinião?"

- "Sim pois..."

- "Mas isso é grave, meu amigo. Então a minha opinião vale?"

- "Muito."

- "Nesse caso, eu necessitaria ler com vagar, com toda a atenção."

- "Mas, eu tenho de levar o original à folha. É curtinho. Lerá num momento."

Li. Li e não achei mal. Ao contrário. Certa harmonia agradável e constante, harmonia de forma, harmonia de fundo, feitas de pequenas audácias de pensamento e de expressão, difíceis de orquestrar. Notei apenas um exagero de sinais sintáticos, travessões, virgulas, pontos-e-vírgulas, pontos finais, e sobretudo, reticências.

O abuso das reticências me é particularmente enervante (a não ser quando entram, num sistema personalíssimo de notações, compreensível em certos indivíduos muito irregularmente "individuais".) Ponham quantas forem necessárias para indicar suspensão ou transição inesperada. Mas este costume de derramar ao pé de cada período uma série de pontinhos, para denotar que a frase é aguda, que ali há coisa, que a passagem envolve malícia ou profundidade - não, não.

O leitor (sempre inteligente) irrita-se por não se lhe deixar o gosto de descobrir por si mesmo as sutilezas, as intenções, os valores velados. E depois o autor acaba por botar reticências em tudo, porque é difícil que um autor não veja coisas a realçar em cada um dos seus períodos. Afinal, a função dos pontinhos desaparece, e onde eles não estão é que a gente vai ver se desentoca o melhor.

A mania das reticências não tarda em semeá-las no próprio pensamento. Recolhem, como as bexigas. E lá se vai o amor da claridade e da justeza, lá vem o prazer vicioso do equívoco, do ambíguo, do flutuante.

Os antigos não usavam reticências. Faltou-lhes pois uma boa forma de notação, hoje indispensável. Mas o fato é que a estreiteza do sistema de suplementares da palavra tinha as suas vantagens. Forçava-os a tudo exprimir e sugerir com os recursos únicos da frase nua e dos seus ritmos naturais. Em vez de pôr um sinal de ironia tinham de açacalar a ironia através da rede dos períodos. Em vez de indicar com que óculos cinzentos ou vermelhos se havia de ler o capítulo ou a página, davam à página ou ao capitulo a tonalidade sentimental ou mental conveniente. Era o processo direto, que penetrava até às carnes e aos nervos do estilo.

Podiam falecer-lhe a este as flexibilidades e esfumaturas da sensibilidade moderna, mas ainda isso era uma vantagem, porque era uma disciplina. O escritor havia de se resignar, por muito indeciso e ondulante que tivesse o espírito, ao freio de um métier e havia de viver perpetuamente em busca do límpido, do incisivo, do luminoso. Nunca se entregava senão a construções de pensamento com uma classificação e um fim. Toda a sua aspiração era fabricar obras acabadas, portáteis, que representavam aquisições (como diz Emerson a propósito já não lembra de que autor) coisas que se poderiam sopesar, palpar, pôr no bolso e levar para casa - como um utensílio, como uma jóia, como uma fruta.

Representei tudo isto por outras e mais breves palavras, a Nicolau, cujo valor não deixei de tomar para estribilho. Guardou os originais, acendeu um cigarro e perguntou, com um sorriso reticente:

- "Então, só um excesso de... pontinhos?"

"Só, Nicolau, só. Mas isso mesmo, ó Artista, ó Imaginífico, ó Mistagogo! é talvez mania ou sutileza do meu bestunto emperrado. Quando vejo um desses escritos retalhados em pequenos parágrafos cada parágrafo seguido de uma secreção de pontinhos, tenho logo a idéia de uma desfilada de cabritos.

"Mas, pensando bem, penso que um escritor moço precisa de ter certa porção de cacoetes e singularidades, até de erros, dentro de certo limite porque tudo isto serve exatamente de lhe dar um ar de viçoso verdor e de divinatória inexperiência, a graça do gênio ainda ignorante de si próprio, todo em flor e esperança.

"As pequenas carepas envolvem uma promessa festiva de aperfeiçoamento ao passo que a lixa insistente e minuciosa, tirando todas as titicas e asperidades da superfície, deixa ver melhor as imperfeições essenciais da matéria e da construção.

"Esses cacoetes, essas singularidades, esses descuidos constituem uma garantia para o escritor. Ninguém suspeita nele um gramático, um espírito peco e miúdo, preocupado com a língua e outras superfluídades peróbicas. Perdoam-lhe por simpatia, numa absolvição geral, as faltas cometidas, e ainda as que venha a perpetrar. Ao passo que os escritores corretos dão ganas a todo o mundo de lhes descobrir trincas e manchas.

E isto sempre se consegue: a correção é uma zona ideal de equilíbrio instável..."

Ia eu assim dissertando, alheio ao bonde e ao tempo, quando uma brecada instantânea fez estralejar todo o arcabouço do carro. Gritos, borborinho. O bonde havia pegado uma carroça pela rabeira e arremessado esse veículo, com os seus dois animais, a três metros de distância.

A carroça adernara, com uma das rodas meio fora do eixo, e os burros, presos ao correame e aos varais abatidos, resfolegavam largamente, com estremeções espaçados de toda a courama.

O pior é que o próprio carroceiro, cuspido para o chão, raspara a poeira e se estatelara ao lado, a verter sangue da cabeça, as mãos meio enclavinhadas, o peito a arquejar sob a camisa aberta.

Magotes de curiosos iam e vinham enquanto dois homens de maior iniciativa tratavam de recolher a vítima a uma casa próxima e de levantar os animais.

Válidos, prestantes bons homens! Surgiram de repente da massa amorfa, como os que sabem querer e mandar. E eu era da massa amorfa, imprestável distraída, hesitante. Ó céu, cada dia me reservas uma humilhação!

Depois, que, vinda a polícia e o carro da assistência, o bonde pôde continuar a viagem, os passageiros consternados ainda pormenorizavam o ocorrido, explicavam o desastre, discutiam as culpas. Quanto a mim, conservava-me quieto, com a visão pasmada daquele homem caído no chão, a derramar sangue na poeira, e do triste do motorista que parecia fulminado de estupor, na balorda prostração do animal tocado de raio.

Nicolau catucou-me de repente no braço. Voltei-me para ele como quem despertava.

- "Mas!... quer que lhe diga?" (recomeçou) "não estou de acordo com o senhor."

E tinha um arzinho entre provocador e mofento.

- "Comigo?! Em que?!..."

- "Nesse negócio de reticências. A mim me parecem indispensáveis. A questão está naquilo que se pretende dizer ou sugerir."

E por aí foi, a traçar com o indicador o desenho dos argumentos. Dei-lhe sempre razão até o termo do discurso e da linha. "Sim. Claro. Sim! Pois não. Sim, sim!"

Afinal, disse um adeus veloz a esse espírito gentil e corri a um café, onde fui tomar a minha xícara em silêncio e em penitência, e reatar os fios inacabáveis do meu perene diálogo comigo mesmo - com o único indivíduo que não se aborrece quando o contrario, com o único indivíduo que me aborrece quando o não quero contrariar.

RUÍDOS E RUMORES

As almas têm umas irradiações pouco observadas - sem nada de comum com a transmissão de pensamento, o magnetismo e análogas complicações etéreas, ódicas e místicas.

Não há uma ciência (e ainda bem, arre!) mas há uma arte, uma pequena arte sutil sobre a caça das irradiações da personalidade, através dos rumores e das vozes.

Tenho uns vizinhos esquisitos, um casal velho que vive fechado em casa e raramente se deixa ver. Trabalhando ou lendo no meu gabinete, ouço vozes, passos, tosses, assoadelas arrastamentos de móveis, bater de pregos, - tudo espaçado e abafado, passando através das paredes como vagas mensagens de um mundo sigiloso.

Ponho-me, às vezes, a escutar esses rumores e, à força de os ouvir e comparar, não só eduquei o ouvido para lhes perceber as menores variações, como consegui fixar o valor expressivo de alguns deles.

Cheguei à conclusão de que o homem é gordo, rude, voluntarioso, e talvez com um defeito numa das pernas. Pisa com força e peso, mas de um jeito claudicante; tosse de um modo rápido e sacudido; os ruídos que produz batendo pregos ou fechando portas são sempre céleres e inteiriços, e sua voz é robusta e serena.

Por que então não sai de casa? Provavelmente, algum incômodo ou lesão localizada, que o impede sem lhe afetar o estado geral.

Quanto à mulher, deve ser velhota, magra, tristonha a paciente. Seus passos apenas chiam no soalho, sua voz mal se ouve, assemelha-se a um arrulho monótono. De, quando em quando, escuto-lhe uns espirros longamente gemidos. Esses espirros por si sós ainda me fornecem uma indicação: a senhora é do interior de São Paulo, provavelmente de lugar pequeno, e talvez da zona sorocabana.

Outro dia, tive um susto: o homem entrou a falar alto e ríspido, a dar passadas por toda a casa.

Estaria a maltratar a pobre senhora? Apurei o ouvido. O vizinho andava, parava de quando em quando, falava falava, e depois punha-se a andar de novo, para de novo estacar e falar: o ritmo característico de uma crise de raiva recriminante.

Mas que poderia ter-lhe feito a pobre velhota, tão calma e resignada?

Ansioso, apurei ainda mais o ouvido, e só descansei quando ouvi um espirro da vizinha: atchiii!... Esse espirro, longo, pacífico, modulado pela forma exata do hábito, garantia que a zanga não era com ela.

Hoje, finalmente, viajei de bonde com o casal, que saiu conforme às revelações sonoras. O homem, alto, gordo e vermelho; ela, seca e sumida. Ao tratarem de descer, ele puxou a corda da campainha num golpe incisivo e forte. Desceram, e então vi que ele tinha um pé inchado em chinelo.

Pus-me a traduzir, pelo resto da viagem, os sons da campainha.

As vibrações indicam o sexo, a idade aproximada e o temperamento de quem as faz retinir. Há campainhadas tímidas, indecisas, distraídas, discretas, nervosas, indolentes, autoritárias, coléricas.

Umas previnem, refletidas, o motorista, a quase uma quadra de distância, declarando, calmas e incisivas: "Pare aí adiante; olhe que está avisado!"

Outras exprimem certa dúvida: "Deverei saltar aqui?... Será aqui mesmo o ponto que me convém?..."

Outras enfim, após tantas, deixam transparecer a surpresa de um apalermado que de repente se achou no ponto de parada sem ter dado por isso: "Oh, diabo, cá estou; pára aí!"

A linguagem das campainhas pode, porém, exprimir coisas ainda menos triviais.

Outro dia, vinha um passageiro novato no bairro, que mandou parar em certo ponto, e não desceu: tinha-se enganado. Ressoou surdamente a campainha, acionada pelo condutor, um português muito plantado em si mesmo: "Bom, vamos embora."

Duas esquinas adiante, o homem dá nova ordem de parada, e ainda não desce: tinha-se enganado outra vez. Então, a correia da campainha fuzilou nos ganchos como uma chicotada, e o metal retiniu com tal expressão, que se entendeu perfeitamente: "Roda!. .. Raios o parta!"

Há um conto de Gautier O Ninho de Rouxinol, onde figuram umas jovens estranhas, que unicamente comunicam com o mundo por meio dos sons. Todo o universo, para elas, se traduz em música, e só em música elas traduzem o que sentem e pensam.

Realmente, não há nada que não se possa resolver em música, e é lícito conceber-se um mundo em que fosse essa a linguagem universal das coisas e das almas. Sem irmos, porém, às alturas da imaginação, é fácil reconhecer que tudo trivialmente, em redor de nós, se manifesta por sonoridades, ruídos e silêncios.

Sabe disso toda a gente que dispõe da integridade do seu aparelho auditivo. O que pouca gente sabe é como se podem obter impressões novas, surpreendentes e divertidas das coisas e das almas que nos rodeiam, - apenas aplicando o ouvido à sondagem e interpretação dos sons.

Nós vivemos pelos olhos. A estes confiamos quase exclusivamente a missão de observadores e testemunhas. O sentido auditivo reduzimo-lo quase a um simples papel de serviçal obediente às determinações da vontade. Vemos tudo, mas só ouvimos o que queremos. É incrível a capacidade de que dispomos para eliminar as impressões do ouvido, no meio do rumor infernal das ruas, do bruaá de um café regurgitante de palradores.

Ainda hei de escrever um artigo sério para um jornal sério, um artigo científico, cheio de termos técnicos como um queijo cheio de saltões, a propugnar a educação e a aplicação mais racionais das faculdades auditivas. Quantos afluxos de sensações sistematicamente rejeitados, e que poderiam ser tão úteis á inteligência, e úteis à própria defesa do indivíduo!

E depois, se a moda pegasse, se começássemos todos a fazer um uso mais consciente, mais constante e mais largo desse aparelho receptor, seria impossível que um grande número de cidadãos não se insurgissem afinal, indignados, exigentes, furiosos, contra a pandemônica, vertiginosa e martirizante barulheira da cidade, contra este caos sonoro que nos engole e nos aniquila.

PALAVRAS CRUZADAS

Veio à minha frente, ontem à tarde, um passageiro engolfado num sobretudo enorme e num largo jogo de palavras cruzadas. Espiei um pouco por cima, o homem percebeu o meu movimento, voltou-se, reconheci-o: era o meu ex-vizinho Eulálio Peixoto, professor de Matemática e de conformidade.

- "Pois até você, Peixoto!"

- "É para você ver, Felício. Mas quem pode resistir! Todo o mundo vive às voltas com isto. Ainda hoje vi uma senhora, com um livro aberto, no bonde, dentro do livro ia um retalho de papel - era o jogo. Tenho um conhecido que traz o seu dentro do chapéu. Outros o carregam na carteira e em qualquer momento de descanso, no bonde, no café, na esquina, lá se põem a decifrar. Curioso! A que é que você atribui esta mania?"

- "Gosto de quebrar a cabeça".

- "Está enganado. Isso é o que menos influi no caso. Quantidade desprezível. A vida toda, toda, desde as grandes até às ínfimas coisas, é um tecido de quebra-cabeças."

"Dirá você que são problemas repulsivos - uns tenebrosos, como a própria vida em si, outros atenazantes, como o do pão que se há de comer no mês que vem. Perfeitamente! Mas, nesse caso, haveria uma infinidade de passatempos deste mesmo gênero à nossa disposição - os problemas de aritmética e álgebra, o xadrez, o soneto, as ações humanas, o acróstico... veja você, o acróstico tão aparentado com isto, e tão mais interessante!

"Não, o prazer do entretenimento é o que menos influi nesta epidemia. Ele existe, sem dúvida, no fundo de todos estes exercícios, mas neutro, indiferente à oscilação e variedade das aplicações."

- "Mas, então, Peixoto, onde é que está o busílis?"

- "Eis aí o grande problema das palavras cruzadas! Esse é que eu gostaria de ver discutido. Para mim, provisoriamente, o segredo só tem uma explicação, uma só: contágio mental.

- "Mas como explicará você o contágio, por sua vez?"

- "É outra questão. O contágio existe, é evidente, manifesta-se por mil formas. Sempre existiu. A moda nunca foi outra coisa que um nome diverso desse fenômeno.

O joguinho apareceu um dia, lá na América do Norte, como um desses mil divertimentos com que os jornais engabelam o público. Ou porque tivesse uma feição mais atraente, ou porque o jornal que o inventou fosse de grande circulação, ou porque se anunciassem prêmios convidativos, a coisa teve êxito, despertou os êmulos e os imitadores, - e eis a epidemia armada, a alargar-se por toda uma região, por todo um país, transpondo os mares, saltando em portos distantes, explodindo em todos grandes centros, voando a todos os recantos do mundo."

"É a própria, a propriíssima curva de todas as epidemias - explicou Peixoto continuando. - Há um primeiro foco, lento, hesitante, dúbio. Repetem-se os casos, nas vizinhanças. E, à medida que se repetem, a intensidade sobe. Há um momento de máxima intensidade e máxima expansão. A epidemia alastra-se.

"Depois, vão-se extinguindo aos poucos os mil focos espalhados, bambeia a fúria do mal, os casos voltam a ser mais brandos, mais incertos, e tudo acaba como um incêndio rápido que lambesse e queimasse todas as folhas e gravetos secos disseminados por um mato verde, morrendo afinal aos pedaços, por falta de alimento e de vento."

Peixoto fez-me ver em seguida como o contágio mental vai alargando, em todas as suas formas, o seu campo de expansão.

Em outros tempos que não vão tão longe, cada país era um campo restrito de ressonâncias, e dentro de cada um desses campos havia outros, igualmente quase fechados - as classes, as categorias sociais. Um sapateiro da Idade Média estava muito mais longe de um magistrado, na mesma cidade, do que hoje um fazendeiro de Mato Grosso se acha de um professor de Heidelberg.

As modas, outrora, levavam muito mais tempo a ir de Paris à província, do que, hoje, de Nova York ao Extremo Oriente. Demais, propagavam-se em linha horizontal - dentro de certas classes; hoje propagam-se tanto no sentido horizontal como no vertical - entre as gentes colocadas em posição semelhante e entre as que ocupam qualquer outra posição na escada ascendente ou descendente.

O contágio, hoje, envolve tudo. Tudo pode transformar-se repentinamente em mania coletiva. Outrora, havia epidemias de misticismo, de guerra ou de suicídio limitadas a certas regiões. Hoje, toda a vida universal tende a ser uma sucessão de epidemias. Há epidemias universais de dança, epidemias esportivas, epidemias de jogo, epidemias políticas, epidemias artísticas, literárias, epidemias econômicas, epidemias filantrópicas.

Se algum dia houve a ilusão do que os homens fossem capazes de se deixar guiar pela razão, hoje o mundo inteiro é um só vasto campo de experiência a provar todos os dias, que os homens agem sistematicamente à revelia da razão - o que não quer dizer que uma vez por outra, não possam encontrar-se com ela, por acaso. Quanto mais se civilizam, mais imitam e copiam. Quanto mais prezam a individualidade mais a perdem. Quanto mais amam o novo e o original, mais feitos "em série" parecem.

Os motivos de ação vão-se tornando, cada vez mais, efeitos de sugestão coletiva.

Os Estados Unidos, que se diriam a terra por excelência do individualismo violento, são na verdade a terra por excelência da socialização absorvente. O que dá a aparência da liberdade é a franqueza exterior dos movimentos. Pura aparência. Não há nada que pareça tão "livre" como as peças ativas de um tear moderno, a trabalharem silenciosamente, como por si, como uma espécie de alacridade serena e de inabalável consciência do dever.

Na realidade, o homem por lá não tem a mínima liberdade, no sentido clássico, estóico, de liberdade interior, fundamental, soberana; inviolável - aquela que Emerson por lá mesmo exaltava. É sempre homem de um partido, de uma igreja de um clube, de uma corrente, - um dos caracteres de que se compõem as palavras de um pensamento coletivo, para ele proveitoso mas indecifrável.

Formidáveis, naquela terra, o volume e a rapidez dos movimentos de opinião ou sensibilidade, isto é, de contágio mental. São turbilhões que passam levantando fiumanas de almas como folhas secas. Estes movimentos tanto podem dar-se a propósito de bebidas, como de um match de box; de uma eleição, como de uma nova dança de negros; de um escândalo teatral como de uma doutrina religiosa

Enfim, o indivíduo vai sendo empastado na comunidade e arrastado nas convulsões obscuras das forças elementares que a percorrem e remexem.

Este o pendor contemporâneo da civilização. Este o seu perigo mais tétrico. Ela tende cada vez mais a absorver as personalidades, como um organismo em jejum forçado tende a alimentar-se às suas próprias expensas, esgotando os seus elementos vitais, esgotando-se...

Chegado a este ponto, Eulálio interrompeu-se por que me achou distraído. Na verdade, a minha aparente distração estava apenas em que eu lhe bebia as palavras, e as memorizava.

Mas ele tinha a sua razão de me estranhar o silêncio e a imobilidade; porque a boa educação manda que, nas conversas, se dêem todas as atenções à pessoa que fala, e nenhuma ao que ela fala.

PASSEIO DOMINICAL

Hoje, domingo, quando cheguei ao meu posto de espera, por volta de meio-dia, lá estava, em fila, uma família pobre.

Era visível que tinham destinado o dia para passeio e que esse passeio era para eles um acontecimento. Respiravam timidamente a frescura das impressões novas.

O chefe, homem de meia-idade, ia frouxamente embrulhado num terno de brim pardo reluzente do ferro de engomar e onde mal se dissimulava uma carta topográfica de remendos e serziduras. O chapéu mole, puído e bambo tinha sido cuidadosamente armado sobre os cabelos crescidos, repuxados a pente para trás das orelhas, onde formavam caracóis. A camisa era limpa, e um sorriso satisfeito, que se diria igualmente lavado com sabão de cinza, ao jorro da torneira sobre a tina, se lhe abria na cara tostada, como uma toalha a corar ao sol.

Pois filhos buliçosos, entre os seis e os dez anos, enfarpelados à marinheira, com grandes colarinhos deitados, por cuja abertura se estripavam altos laçarotes de fita escocesa. Tinham chapéus de palha amarela com cintas atuis, nos quais se liam nomes de navios de guerra: "Aquidabá", "Timbira", em letras douradas. Traziam bengalinhas, demasiado compridas e pareciam mais atrapalhar-se do que divertir-se com esse luxo desacostumado.

A mãe, maciça no seu largo vestido de lãzinha cor chocolate, os cabelos repartidos em duas asas negras e lisas, apanhados numa rodilha farta sobre a nuca morena. Estava alegre como os outros, mas de uma alegria meio assustada, - talvez acanhamento do vestido novo, dos sapatos novos, do penteado que lhe repuxava a pele da testa.

Quando o bonde chegou, os pequenos treparam desajeitadamente, agarrando-se ao carro com as mãos ambas e foram colocar-se nas extremidades fronteiras dos dois primeiros bancos, a garantir os postos de observação.

A mãe entrou com eles, arrastando um pela blusa, empurrando outro pelo traseiro e sentou-se ao pé dos dois, ralhando em voz baixa, como se estivessem num lugar de respeito.

O pai mais senhor de si, aboletou-se a pouca distância, inspecionando tudo com um semblante meio severo meio condescendente.

Depois, todos entraram a rir e palrar. Todos se viravam para um e outro lado, a olhar os prédios, as perspectivas das ruas, as massas retangulares dos edifícios alteados ao longe, os automóveis que passavam. Divertiu-os muito um caminhão cheio de futebolistas seminus e gritadores. Também acharam bastante graça num velho de barbas bíblicas, que trazia na mão uma espécie de árvore, de folhagem toda florida de papaventos vermelhos, amarelos e azuis. E os papaventos giravam e zumbiam como um enxame assanhado.

O estridor das rodas do bonde nas curvas mal engraxadas foi ponto de partida de uma rivalidade entre os dois pequenos, cada qual mais empenhado em imitá-lo com a boca. A mãe ria-se, tapando os dentes com a mão, relanceando os olhos desconfiados pela circunvizinhança.

Quando o condutor marcava as passagens, os peque-nos queriam saber como era aquilo, porque era, e o pai dava-lhes explicações fantasiosas que eram ocasião de teimas e risos.

Enfim, como aquela família se divertia!

Ao chegarmos à cidade, saltaram para ir ver as vitrinas e, de certo, para ir a algum botequim tomar café-com-leite e comer cavacas e pães-de-ló - um festim delicioso.

Respiravam tranqüilidade e alegria. A alma boiava-lhes numa descuidosa satisfação de filhos amados da felicidade e do candor.

Passear de bonde, andar pela cidade, ver a gente, ver as vitrinas, tomar café-com-leite num botequim grande, cheio de espelhos, em chávenas de louça brilhante, - que recreio, que consolo, que temeridade jovial e dissipadora!

Nunca tenho inveja a ninguém, e aos felizes da felicidade exterior, ainda menos que a ninguém. Mas diante dessa família, tive uma espécie de inveja.

Pobre alma escalavrada e enfastiada, para quem tudo quanto divertia aquela gente era vago e distante como tudo quanto é muito próximo e muito visto, senti em certo momento uma impressão angustiosa - a impressão que teria alguém, de repente, apalpando-se, de que metade si mesmo já era coisa morta.

RUFINA

Encontrei no bonde um homem parecido com o Coronel Ferrão, o ex-protetor de Rufina-Augusta. Esta surgiu imediatamente ao seu lado, acomodando os vestidos, sorrindo e lançando sobre mim aquele seu olhar magnético através daqueles cílios de treva, com uma

................................................. dolcezza
che intender non la può chi non la prova.

Claro que era uma aparição imaginária. Mas não me impedia que ficasse olhando para o lugar onde colocara a moça e lhe dirigisse a esta um longo e confuso improviso.

"Quem és tu? De onde vens? Que fazes? Como vives?... - Na verdade, nada disso me interessa muito. Afinal de contas, nada tenho contigo."

"O que me interessou desde logo em ti foi apenas a tua figura. Apareceu-me de repente, no meio da vulgaridade fosca das coisas, como uma obra-de-arte perdida num subterrâneo na qual batesse de repente o jorro de uma lanterna furta-fogo."

"Era-me tão indiferente saber quem fosse a pessoa que havia dentro dessa figura, ou mesmo se havia uma pessoa, como seria indiferente, diante da graça de uma vela branca no mar azul, saber de onde vinha, para onde ia, se levava a bordo uma princesa errante ou um ogre sinistro.

Contudo, não me esqueci mais de ti.

Tu me entraste na alma como um farrapo que a ventania atira por uma porta descuidosamente aberta.

A porta de minha alma profunda estava aberta naquela hora. E eu fiz como a mulher pobre que, tendo achado em sua casa um farrapo de escumilha brilhante, trazido pelo vento, não tivesse ânimo de o varrer com o cisco, o levantasse e o prendesse à parede, entre um caco de espelho e um cromo descorado.

És talvez um episódio horoscópico da minha vida, posto de reserva pelo Destino para ser lançado, certo dia na desfilada heteróclita dos casos da minha biografiazinha. privada.

Como que havia em mim um lugar vago à tua espera. Vieste, caíste no lugar justo, e aí estás, fixa e luminosa como uma pedra fina que, por maravilha do acaso, saltando, perdida, viesse cair justamente no engaste vazio de um velho anel.

Devias fatalmente aparecer-me em determinada hora, como aparece a forma exata e exteriorizada de um pensamento flutuante, longamente entrevisto, longamente resolvido no espírito.

Eras um motivo que faltava ao magro concerto da minha vida consciente e que aí havia de surgir, deliciosa serpe melódica a ondular e faiscar num relvado de ritmos obtusos.

A música interior tem hoje uma dolência menos remota, um gemido menos vago, uma ânsia interrogativa mais profunda, uma angústia menos aérea e mais humana.

Por que me apareceste? Por que me agradaste? Por que não te pude falar? Por que me foges sem o querer, e por que te evito, procurando-te?

E por que vim a conhecer da tua vida, ó coisa graciosa e fugente, apenas o aspecto sombrio e grosseiro? Por que não me reapareces, para me confiar a tua história risonha e dolorosa, a celeste e bestial realidade do teu destino, a lama e a chama da tua alma, ó gentil, ó brilhante, ó miserável borboleta do brejo?

Mas a tua vida não me interessa, na verdade. Que é que eu tenho contigo, que é que tens tu comigo?

Vimo-nos duas vezes. Será uma razão para que te deva agora ver sempre? Tanta coisa bela e passageira como tu, bela passageira de bonde, tem encantado os meus olhos por uma vez necessariamente única - uma nuvem, um pássaro, uma hora de sol, um certo sorriso da felicidade que se perdeu por ser achado!"

Tudo isto era dito com os meus botões. Mas, de repente, o homem que se parecia com o coronel me encarou formalizado:

- "O senhor está estranhando alguma coisa na minha pessoa?"

Olhei para o homem que se parecia com o coronel e respondi, sem saber ao certo o que dizia:

- "Desculpe-me, senhor, tenha a bondade de me desculpar. Eu não o conheço, nem conheço ninguém que se lhe assemelhe, mas estava vendo se o senhor não seria uma outra pessoa."

O homem deu-se por satisfeito com a explicação.

CAMELÔ

Viajei ontem ao lado de um camelô, ou seja aquilo que outrora se chamava um bufarinheiro ou charlatão. Hoje, esta última palavra designa categorias mais ilustres de artistas da patranha; era preciso um vocábulo novo, que evitasse confusões; a lei de repartição de Bréal.

Pus-me a observar os gestos e as expressões do meu companheiro de viagem, como outros examinam, fascinados, os homens eminentes em certos ramos clássicos de atividade ou de inatividade superior.

Modesto e simples não parecia sequer sonhar que pudesse merecer a curiosidade e admiração de um seu semelhante (aliás muito diverso, no meu caso). Por vezes, até se esquecia de si, e ficava para ali murcho, com esse ar aparvalhado e desarmado que só costumam ter, em público, bem familiarizadas com a idéia da sua nenhuma importância.

Ia muito sumido no seu canto, fumando maquinalmente um cigarro meio apagado. Talvez premido por dentro, como por um parafuso, por alguma preocupação de família, ou de dinheiro, ou de saúde.

A certo momento, saltou, enfiou as mãos nos bolsos das calças - uma aragem áspera começara a dar tremuras de sezões às árvores da rua - baixou a cabeça e entrou apressadamente por uma viela, deserta e feia como um pátio de cortiço em dia de chuva.

O camelô, misto de artista, de orador, de pelotiqueiro e de meneur. A multidão, sempre bestial, despreza-o. E ele é que realmente sabe desprezar a multidão, porque a domina, a maneja, a desfruta, e para tanto tem de a enfrentar, cada dia, como um domador de olho vivo e de decisões fulmíneas.

Este exercício requer mais inteligência, mais sangue-frio e mais intrepidez do que aqueles que são consumidos por toda a roda de basbaques que se divertem com esse retalhista do heroísmo.

O camelô não é negociante; é um homem que negocia por acidente. A venda de coisas é mero pretexto, no fundo, ou mero ponto de apoio exterior, de que a sua complexa personalidade necessita para funcionar. Difere do comerciante normal em aspectos essenciais, e a vantagem estética é toda sua: faz do comércio um simples ganha-pão, e não um sistema de vida; é senhor absoluto da sua atividade e não escravo de uma atividade coletiva que o supere e o inclua como uma peça; não tira do comércio nenhuma importância pessoal, mas, ao contrário, ele é que condescende em dar ao comércio umas sobras da sua rica provisão de coragem, de inventiva, de facúndia, de dons capciosos e sedutores, e em sacrificar-lhe um pouco do seu nobre instinto de independência e de travessura.

O camelô tem consigo uma dose de força intrínseca ou um grão de bravura que falece aos da imensa turba do encostamento mútuo.

Estes procuram e arranjam a sua casa no plano das atividades normais e respeitáveis, e gozam, com um mínimo de originalidade e energia própria, ou mesmo sem nenhuma energia nem sombra de originalidade, os benefícios mais ou menos previstos e mais ou menos automáticos da organização. Aquele, porém, na sua pequeneza e na sua modéstia, cada dia sai de casa para o mundo como pela primeira vez. Sai completamente só, quase inerme sem a armadura dos mais, sem os guarda-costas dos mais, sem boas e fortes armas de combate, - só, quase nu, com uma funda na mão, como o pastorzinho Davi quando partiu em busca do membrudo Golias.

Sai escoteiro e ignorado, sem rumor de ferros, sem estropear de cavalos, sem alalis de trompa, sem atitudes nem gestos, à caça de vagas migalhas de um tesouro possível, escondido sob a guarda de um bicho-manjaléu com milhares de cabeças.

Isto é quase a reprodução, aí na rua, entre gentes frívolas e sensatas sob os olhos frios dos passantes colocados e tranqüilos, das façanhas ilustres do ágil e gracioso Sigurd quando venceu os anões e prostou o dragão Fúfnir.

Nós vivemos na plena teia dos mitos e das lendas, e não damos por isso. Perdemos o sentido poético das situações.

UM GRANDE EGOÍSTA

O meu amigo Heráclides, de ordinário benevolente, ia ontem azedo, no bonde. Observava exemplos de aspereza e grosseria de maneiras, aos quais via um sinal meteórico de barbarização, uma prova da decadência do senso de humanidade, que outrora a religião alumiava ainda nos mais incultos.

Heráclides apontou-me, sucessivamente, um passageiro que deixara de ceder lugar a uma senhora, apesar dos olhos compridos que ela deitava para o seu lado; um menor que se desarticulava no banco, como uma letra gótica, e soltava grossas baforadas de fumo na cara dos vizinhos; um cidadão bem trajado que disse dois desaforos ferinos ao condutor porque este se atrapalhara numa questão de troco, e um homem gordo, escarrapachado como uma foca, as perninhas roliças largamente jogadas para os lados, a direita a premir uma pobre moça, a esquerda, a bater no joelho de um velho magro, que fazia horríveis esforços por ocupar apenas a metade do espaço a que tinha direito e que lhe era necessário.

- "Veja, Trancoso, veja: todo esse pessoal tem, no fundo da alma, um desprezo absoluto pelo bicho homem, uma indisposição latente e injuriosa contra o gênero humano em massa."

- "Heráclides, estas pequenas coisas não têm a importância que você lhes quer dar."

- "Não têm importância? Então você acha que nada significa, nada, aquilo que aflora à periferia das personalidades, normalmente, ordinariamente, como o efeito imediato e espontâneo de uma fermentação? Então, se essa gente que ai vai tivesse outro fundo, esse fundo estaria a borbulhar cá fora dessa maneira? Deite dois dedos de açúcar puro num copo, encha o copo de água; que é que vem à superfície? gases sulfúricos? fragmentos microscópicos de potassa? traços de ácido prússico? bavas de sal de azedas?"

Curvei a cabeça, como quem cedia por ceder, para não discutir. Mas, no fundo, cedia completamente. Entretanto, não convém encorajar nos outros essas inclinações à clarividência. Nada tão inútil nem tão deletério como enxergar demais.

Heráclides calou-se, com os olhos perdidos no filme que se desenrolava por fora do bonde. Depois de uns minutos de silêncio, disse-me:

- " Quero-lhe fazer um convite. Você não gostaria de entrar para o Clube dos Egoístas?" - E antes que eu pedisse explicação: "O Clube dos Egoístas, um grupo que fundamos, eu o Gabriel, o Tomasinho, o Tinoco, ali no fundo do bar Kauffman. Reunimo-nos todas as noites para conversar, ou para não conversar, apenas para beber o nosso chope. Só se exigem duas condições: cada um paga a sua despesa, e deve ser um indivíduo sem espécie alguma de generosidade."

- "Que extravagância? Então pode entrar toda a gente."

"Está enganado, redondissimamente enganado. Pois não vê que este mundo anda cheio de indivíduos que se sacrificam pelo próximo? pelo bem da Pátria? prosperidade da lavoura? pela educação nacional? Pelo futuro da indústria petrolífera ? pela religião? pela família? pela humanidade? Não vê como pululam, como se embatem, como fervem as manifestações de caridade, as obras pias, os organismos de previdência e auxílio mútuo, as campanhas contra a doença, a ignorância e o vício? Não percebe como há uma infinidade de pessoas feramente devotadas a todas as nobres causas?

Pois, bem. Nós não nos preocupamos com essas causas: só nos preocupamos conosco mesmos. Só. Absolutamente só. Então, sucede que a nossa prosa, lá no bar, à noite, é deliciosa.

Cada um de nós é um poço de desencanto. Mas esse desencanto é um encanto. Tocamos com o dedo todas as misérias da hipocrisia e da mistificação. Intensificamos danadamente, com a nossa vida interior, a acuidade nevrálgica da nossa visão dos homens e dos acontecimentos.

Despojamo-nos de tudo que é vestimenta de idéias feitas, de preconceitos recebidos, de concepções correntes, de inclinações bem vistas. Somos homens diante de homens; homens, só homens, simplesmente, tristemente, heroicamente homens."

- "Mas que é que tem isso com o caso de que vínhamos tratando?"

- "Tem tudo. Tudo. Essa gente toda que você aí vê é gente que se desumaniza. É gente que não sabe ser egoísta. São anjos. Toda ela se move por puros ideais, por santas idéias, por altos princípios, por desígnios heróicos: batem-se, agitam-se, odeiam-se, caluniam-se, esgadanham-se por amor à família, por amor à pátria, por amor à ordem, por amor ao direito, por amor à cultura, por amor às letras, por amor à civilização e por amor ao próximo.

Por isso mesmo, nós mesmos os egoístas. Metidos conosco: nem filantropos, nem patriotas, nem heróis da família, nem paladinos de coisa alguma. Homens. Apenas homens. Lucidamente, miseravelmente e deliciosamente homens - livres e naturais como os peixes do fundo do mar.

Eu creio que a humanidade, hoje, não tinha nada melhor para fazer do que praticar e santificar o egoísmo - Você quer entrar para a tropa?"

- "Quem sabe! Depende."

Heráclides sorria, como a dizer: "Este ainda não está preparado", e de novo mergulhou no silêncio, fumando profundamente um cigarro de palha. E depois, meio assim como se falasse consigo mesmo:

- "O curioso é que este nosso egoísmo, pelo que vejo, acaba mal."

- "Por que?"

- "Porque tende, naturalmente, muito naturalmente, a transformar-se na coisa mais séria neste mundo: em religião.

As almas descascadas ficam todas tão semelhantes! À atitude que elas assumem diante da infinita miséria da condição humana é tão inevitavelmente uma só, de raiz! Uma sede única de verdade e sinceridade se apodera das gargantas. E um sentimento entranhando de fraternidade acaba brotando por si mesmo, como o grelo das batatas.

Nós, insensivelmente, já nos vamos querendo tanto bem uns aos outros que precisamos de fazer tremendos esforços para não resvalar na sinistra comédia mundana da amizade e de galantaria!

Porque nós, lá, não pretendemos ser senão irmãos."

UM HOMEM PERFEITO

O Sr. João Cesário da Costa é um homem sólido, solidamente refestelado na vida Tem rendas sofríveis, uma bela casa, uma saúde de ferro, um genro colocado na política. Suas ambições nada têm de temerárias nem de atormentadas: são plácidas; limitam-se, evidentemente, a poupar trabalhos e amofinações, a garantir e a entreter a aurea mediocritas ou o otium cum dignitate em que o Sr. Cesário vive desde mocinho.

Conversar com o Sr. Cesário é um exercício que reconforta e tonifica. A uma ausência absoluta de inquietações pensantes, reúne um otimismo tranqüilo. Quando alguma opinião, alguma frase, algum ato equivoco ou complicado cai no domínio de sua percepção, faz um gesto de quem lhe sentisse o mau cheiro, e afasta-o de si, num pudico movimento que não admite réplica.

É possível confabular com ele meia hora, uma hora, sem lhe ouvir outra cousa que considerações sobre o bom e o mau tempo, sobre a superioridade da roupa preta em relação à de cor, sobre a melhor maneira de preparar um molho de tomates, ou sobre as inconveniências de se viajar no estribo do bonde. Fala correntemente, com certa graça natural, acentuando, recortando, remexendo, saboreando com volúpia os ínfimos pormenores, como quem chupa os ossinhos de um frango assado.

O Sr. João Cesário faz-me, às vezes, o efeito de uma boa cadeira de balanço. Quando me sinto fatigado dos meus infindáveis solilóquios, que nada concluem, entreter um quarto de hora de conversação com este homem é o mesmo que trocar um cavalo aragano por uma cadeira fofa e embaladora. Não há senão o trabalho de fazer a cadeira balançar.

Tive ontem esse prazer. O Sr. João Cesário cumprimentou-me com a sua habitual bonomia temperada de autoridade:

- "Como vai o bom amigo?"

- "Bem, obrigado".

- "Bem mesmo?"

- "Assim, assim..."

- "Por que?"

- "Nada. Vou bem."

- "E a família?"

- "Bem."

- "Sua irmã?"

- "Agora bem."

- "Ah! Esteve doente?"

- "Coisa ligeira."

- "Constipação, de certo."

- "Justamente."

- "O tempo é disso. Tudo por aí anda cheio de gripados. Em casa, todos mais ou menos perrengues."

- "Que maçada!"

- "Mas não há nenhum caso sério. Creio que o mais doente ainda sou eu."

- "Não parece."

- "As aparências. Tenho uma dorzinha de cabeça que não para, aqui, entre a fonte e a nunca, passando por cima da orelha, - vê neste ponto. Mas o pior é que o intestino anda funcionando meio à matroca, - de tudo, uma sensação de cansaço pelo corpo todo, essa sensaçãozinha amolante e gostosa de um corpo que está pedindo cama - ou rede, que é melhor... ah! ah!"

- "E o senhor sai, apesar de tudo?"

- "Ah! Não posso ficar preso - é inútil! - senão em último extremo. Acredito mesmo que a gripe, conseguindo resistir-se-lhe de pé, vai embora mais cedo. 8enti-lhe a visita há três dias, sábado. Sábado à tarde. Disse à minha velha: "Por sua culpa, estou gripado." Ela ficou passada. "Por minha culpa, Cesário?" -"Sim, por sua culpa, porque me obrigou, ontem à noite, com aquele frio, a dar uma grande volta pelo bairro. Coitada, arranjou-me mais que depressa um escaldapés, uma camisa de flanela, umas meias de lá, um chá, e esteve a ponto de fazer promessa a Nossa Senhora da Penha. Mas eu exagerava. Gosto de brincar com a velha; nunca vi criatura mais medrosa, quando se trata de doenças em casa. Claro que apanhei porque tinha de apanhar..."

- "Não se sabe como é que ela chega"

- "Não, às vezes se sabe. Mas, no meu caso, não foi o tal passeio de noite. Digo que não foi porque, já antes de mim, o Alfredinho meu filho sentira a primeira bordoada. Só nos contou isso ontem à hora do chá. Demais, estou habituado a fazer voltas a pé, de noite, depois do jantar, quando não chove. É verdade que aquela noite tinha caído uma garoinha, coisinha de nada, ali pelas sete horas. Quando saímos às nove, o céu estava limpo como um prato. E que luar! Fomos até lá ao alto do morro, descemos pela avenida, passamos pela igreja..."

- "Sr. Cesário, leu a notícia daquele crime?"

- "Nem fale! Que coisa estúpida! Como se mata um homem pacato, trabalhador, boa pessoa! Aqui está um caso em que eu, jurado, não tinha contemplações. Então é assim? destrói-se um pai de família como quem acaba com uma cobra à-toa, por umas questõezinhas de nonada?"

- "Havia uma questão de honra, alega o assassino."

- "Honra, honra! Pusesse a mulher para fora de casa."

- "Mas, ele amava a mulher."

- "Qual, nada. O seu dever era esse, e nunca matar. Ninguém pode matar. A vida, quem a dá é Deus, e quem a pode tirar é só Deus".

- "Mas o senhor garantirá que não foi Deus quem a tirou à vítima por intermédio do assassino, como a podia tirar por meio do tifo ou do automóvel?"

O sr. João Cesário não respondeu; nem pestanejou sequer. Puxou do lenço de linho, que trazia dobrado no bolso da direita, escarafunchou as ventas, tornou a assoar-se, dobrou e guardou o lenço. Em seguida tirou um outro de fina cambraia, que trazia alequeado no bolsinho de cima, e passou-o pelos lábios e pelas fossas. Por fim, arrumou-o de novo, calcou-o, e, numa despreocupação satisfeita:

- "Pois é isso".

Pouco adiante, disse-me adeus, esperou o carro parar bem parado, desceu, voltou-se para mim a fazer uma última cortesia, e partiu, muito apertado no seu terno azul de risquinhas brancas, sopesando com graça a bengala de castão de ouro.

E havia em redor dele um halo de perfeição.

Eis aí um homem feliz. Acompanhei-o com um olhar de inveja, enquanto pude; mas acabei por me resignar. Coisas que não se aprendem, não se adquirem. Que fazer? Limitarmo-nos a admirar.

Este indivíduo, como tantos outros aparentemente insignificantes, é uma verdadeira maravilha da humanidade. Que assombrosa obra de inteligência e de técnica magistral, a composição deste mecanismo físico-psíquico, tão perfeitamente adaptado a todas as condições médias de uma navegabilidade tranqüila!

Foi, sem dúvida, fabricado após uma série imensa de provas e após uma colheita e apreciação rigorosa de milhares de dados experimentais. Diga quem o quiser que é mero produto das forças inconscientes da natureza".

DE AMICITIA

Ia eu muito macambúzio, no meu banco de trás, e nem sabia porque.

Lembro-me de que, em casa, quando me aprontava para sair me havia irritado por causa de uns incidentes minúsculos. Ao vestir o colete, o relógio caíra-me do bolso, e ficara suspenso pela cadeia; e algumas moedas que estavam no outro bolsinho despencaram para o soalho, rolando em todas as direções, como expressamente para me fugir. Quando eu passava a escova pelo chapéu, ela deixara pegada à copa uma lanugem de felpas impalpáveis, de seda ou de algodão, que tive de extrair à unha, uma por uma.

Saí quase a correr, e o casaco se me enganchou pelo bolso à maçaneta da porta. Libertei-me, empurrei a porta com um safanão, e ela, voltando, soltou um relincho tão triste, que me senti subitamente envergonhado da minha estúpida impaciência.

Que covardia e que ingratidão ser bruto com as coisas! É preciso, ao contrário, amá-las, no recanto em que vivemos, como as boas protetoras e inalteráveis amigas. O aspecto ordenado, limpo, benévolo e tácito dos objetos que me rodeiam, no meu quarto, parece refletir às vezes algo que não é bem deste mundo: um ambiente de estampa, uma atmosfera de história, um casulo de intimidades intangíveis, uma ilusão de permanência e de espiritualidade - enfim, um sonho, uma doçura, um perfume.

Ao tomar o bonde, porém, já eu pensava em coisas muito diversas daqueles incidentes. De modo que não sei porque fiz metade da viagem tão sombrio, a olhar para o mundo com uma espécie de terror inerte. A estupidez e o mal da vida se me revelavam com a evidência de um acidente brutal, como um sinistro imenso que se acabasse de produzir, ali, de repente, sob meus olhos.

"Hei de consumir os anos que me restam, como tantos que já passaram, a fazer duas e quatro vezes por dia este mesmo trajeto, a percorrer estas mesmas ruas, estas mesmas esquinas, estes mesmos postes, entre as mesmas caras, as eternas caras indiferentes insidiosas, malignas, sornas, fátuas, soberbas, hostis.

Hei de ir todos os dias à repartição, ver a cara regulamentar do chefe, ver as caras dos meus cinco ou seis auxiliares, uma tola outra escarninha, outra fútil e finória, outra bovinamente resignada e mortiça. E não hei de topar muitas vezes na minha frente com alguma cara aberta e sincera, alguma cara iluminada e boa, desfranzida e cordial, que me olhe firme e de chapa com uns olhos direitos e claros como duas espadas, límpidos e quentes como duas chamas.

Meu Deus, como pude viver até hoje deste jeito! Meu Deus como é que hei de viver ainda, sabei-me lá até quando, nesta triturante estupidez e nesta abjeção ignominiosa! Matai-me, senhor, matai-me logo. Ou então, dai-me uma sorte na loteria, que me permita sair por esse mundo, sem cuidados, livre, errante, como o homem que perdeu a sombra, durante os primeiros momentos de sua peregrinação."

Ia engolfado nestes pensamentos amarelos, quando subiu e veio sentar-se a meu lado o Aurélio de Moura. Cumprimentou-me com afabilidade mais larga do que a habitual. Acolhi-o com prônubos alvoroços.

Auré1io perguntou-me solícito pelas minhas coisas, passando-me o braço pelo ombro, com um sorriso de páscoa. Deixei-me abraçar, comovidamente, e conversamos.

Este rapaz é dos que parecem apostados a pensar, no miúdo e no grosso, de modo radicalmente diverso do meu; mas esta circunstância, que em outras ocasiões me quizilava, então se me tornou mais um motivo de satisfação, como um bom molho ajuntado a um prato já de si excelente. Concedi tudo a Aurélio, pelo prazer de o ver trabalhar em liberdade. As coisas vulgares e as coisas estrambóticas que ele dizia, tudo me soava uma doce música.

"Fala, Aurélio! fala, fala tudo quanto quiseres. Agrada-me pensar que é para mim só que tu falas, que o teu espírito veio verter no meu a espuma generosa do seu mosto vivo - uma forma de confidência sem gravidade e sem segredo, mas indiretamente complexa e escancarada.

Fala Aurélio! Achas que os postes de fios elétricos deviam ser pintados de escarlate? Muito bem. Achas que o Brasil precisa urgentemente ser invadido pelo argentarismo estrangeiro, que é necessário matar todos os leprosos e que as mulheres não devem mais aprender a ler nem escrever? Continua, Aurélio; tens razão, porque me divertes e porque confias na minha tolerância. Continua sempre. Pensas que a música é a mais insignificante das artes e que a poesia deverá ser proibida por decreto? Fala, fala....

A mim tu tens a coragem de dizer tudo, e isto significa que tu avalias afetuosamente a minha capacidade de ouvir todos os destampatórios honestos e de levar a sério todas as tolices sinceras. Com efeito, nada mais interessante do que uma opinião, essa coisa rara, essa coisa inútil e preciosa.

Mas, na verdade, o que ora mais me interessa não são as tuas opiniões, é o fato de mas expores nessa confiança tranqüila e ridente, sem reservas e sem receios, à sombra da frondosa Amizade, - a bela, a santa, a benéfica Amizade, o único dom dos deuses desmemoriados, que nunca mais se lembrariam de nós, os pobres humanos, ou que, tendo-no-la dado, entenderam ter-nos feito a maior oferta compatível com o nosso egoísmo e a nossa ruindade".

Entrementes, Aurélio discorria. Asseverava, por último, que higiene pública é apenas o negócio dos médicos higienistas e dos fabricantes de aparelhos higiênicos.

- "Sim, talvez tenhas razão".

- "Bem, eu salto aqui, seu Felício. Mais uma vez, obrigado pela passagem".

Eu tinha-lhe pago a passagem.

"Ora, ora!"

- "Não você nem sabe que favor me fez. Saí de casa sem um níquel. Mas, quando vi você neste bonde, lá da esquina da alameda, disse cá comigo, estou garantido. E eis aí por que você teve de me aturar todo esse tempo! Como sabe, esta linha não é a que mais me convém. Mas quem não tem cão... Obrigadinho. Ciao!".

- "Té logo, Aurélio..."

PROBLEMAS

Hoje, o bonde vinha cheio, e tive de ceder o meu lugar a uma senhora. Esta, ao invés de me agradecer, parece que ficou ligeiramente arrufada com a minha gentileza.

Creio que a ética do bonde manda que, ao ceder o lugar, o passageiro não dê a isso a mais ligeira aparência de um ato de cortesia faça-o friamente, como por uma obrigação regulamentar. Deve ser isso.

Mas será? Eis aí um dos inumeráveis problemas psicológicos que o bonde depara. O bonde é um saco de víspora: é só meter a mão, remexer, pegar, lá vem o problema psicológico.

Infelizmente, esses problemas vão ficando cada vez mais obscuros, à medida que cresce o número dos psicologistas, número infinito, hoje em dia, só comparável ao dos sociólogos. Se o futuro do Brasil dependesse da psicologia da sociologia, estava garantido; e só nos restava lamentar que não pudéssemos viver mais uns cinqüenta ou cem anos, para assistir ao grande fogo de vistas dos resultados. Estupenda coisa a ciência!

Há dias, vi o Sr. João Cesário a conversar atentamente com um mocinho sisudo e altivo. Este falava em coisas difíceis: mentalidade primitiva - formação alógena - metabolismo racial - camadas de aluvião - idealismo hipocondríaco - teorias de Comte e Spencer - obras de Le Play, Fouillet, Tarde, Novicow, Pareto, memórias de Schwaartzemberg e Perikowski, de Astrinaieffe e Dragobsen. De repente, despediu-se e desapareceu veloz, como uma motocicleta.

Corria, provavelmente, a endireitar algum erro perigoso de técnica social, que estivesse para desabar sobre nós. Digno bombeiro da Ciência!

Neste ínterim, perguntei assombrado ao Sr. Cesário:

- "Quem é este menino? Que sábio!"

- "Nem tanto. Muito estudioso, isso sim. Especializou-se - não sabe? É apenas sociólogo".

Senti-me absolutamente acalcanhando com ver um menino que, ainda longe dos trinta anos já havia conseguido ser um sociólogo, apenas. Senti necessidade de esquecer aquilo.

Montesquieu disse que não havia aborrecimentos que não lhe passassem com meia hora de leitura. Não sei se isto provará a virtude da leitura ou antes de Montesquieu. A mim, muitos aborrecimentos me desaparecem com a decifração de problemas ou com jogos de paciência. Armei logo uma série de dificuldades através dos miolos, e depois mergulhei em cogitações para as desmanchar uma por uma.

Foi o que fiz hoje. Não tendo mais em que me ocupar, comecei a extrair e remexer os problemas que o bonde me oferecia, abundante corno pedreira.

Por que é que os nossos conhecidos sempre nos aparecem nos bancos de trás à hora da cobrança das passagens?

Por que é que as senhoras apeiam voltadas para o lado traseiro do carro?

Por que é que os condutores, quando recebem as passagens, vêm com cara de cobradores de contas atrasadas?

Por que é que não se pode tirar um lenço ou abrir uma cigarreira sem despertar a atenção vigilante do vizinhos?

Por que é que, ao contrário, se a gente sofre e tosse com o fumo de um cigarro alheio isso não é percebido nem pelo vizinho fumante?

Por que é que, quando lemos, há sempre um passageiro a querer por força descobrir o que vamos lendo?

Por que é que os homens, quando pedem licença para passar, são mais atenciosos à entrada do que à saída?

Por que é que o lavador de pratos ou o vendedor de bananas trata os condutores como se estes fossem os trintanários de seus coches?

Por que é que o passageiro acha graça nas grosserias ou desaforos do condutor, desde que não são com ele?

Por que é que, encontrando um amigo distraído e pagando-lhe a passagem, ele imediatamente nos pergunta como vai a família?

Por que é que só assobiam no bonde indivíduos inteiramente desprovidos de memória musical?

Por que é que, se chove, há sempre, ao nosso lado ou à nossa frente, um passageiro que não tolera cortinas arriadas?

Por que é que tantas senhoras gordas, não permitindo que se lhes toque de leve com o dedo, não fazem contudo nenhuma cerimônia para se amesendar em cima de nossa perna?

Por que é que há tanta comoção no bonde, se este pega uma galinha, e não há nenhuma por causa do homem enfermo, aleijado e decrépito que vai no carro?

Por que é que os moços bonitos e os célebres ficam sentados de viés?

Por que é que temos tanta paciência para perder duas horas numa pane difícil de automóvel, e nenhuma para sofrer dois minutos de parada do bonde num desvio?

Por que é que as senhoras, ao pagar a passagem, custam tanto a encontrar o dinheiro na bolsa?

Por que é que o bonde estimula em certos indivíduos a vontade de comer amendoim torrado e tremoços?

Por que é que as pessoas mais desocupadas e mais pachorrentas se tomam de pressa e de nervos quando o bonde vai chegando ao ponto final?

Por que é que nos dói mais termos perdido o nosso bonde do que o ter um amigo perdido o trem - ou mesmo uma perna?

ESCOTEIRO

Ainda revejo nitidamente aquele escoteirinho que entrou hoje no bonde pela mão do venerando papai. Um feixinho de ossos, olhos brancos, lábio pendente, postura curva e bamba de aluno de catecismo. Retrato ideal do menino dócil e bem comportado.

Se o inflexível progenitor lhe falava, respondia com respeitoso sorriso, sorriso frágil e distante, virando para a cara fiscalizadora uns olhos de animalzinho perfeitamente domesticado.

O pai, sem dúvida, muito satisfeito com esse rebento esperançoso, tão automático na obediência e na penúria de vida. O pequeno chamava-lhe papai. Coitadinho! Devia chamar-lhe progenitor.

Progenitor é o nome que na verdade calha a esta espécie de autores de vidas alheias. Impiedosamente solícitos, eles parasitam as suas misérrimas criaturas. Polvos agarrantes, colantes e triturantes, abusam do direito de ser senhores de almas. Estão cheios da crença surda de que o melhor que podem fazer a seus filhos é formá-los à sua semelhança.

Parecem orgulhosos de ter mudado o empirismo da paternidade numa especialização técnica. Têm o ar de pais de família diplomados.

Já não lhes bastam as luzes da Pedagogia, da moral, da Religião, da Medicina, da Gramática e do don't. Renovas achegas até na Sociologia. A Psicologia vai-se-lhes impondo como um evangelho (tanto mais cômodo quanto se pode abrir em qualquer lugar e ler de corrida ou salteado). Creio que a heráldica e o cálculo integral também têm que ver com a matéria.

Progenitores! progenitores! homens respeitáveis, sapientes e pendentes, sagazes e tenazes. Tenazes sobretudo. Tenazes de ferro! Só lhes falta um pouco de bom senso e um pouco do senso de humanidade. E apenas perdem o direito a esse nome simples, vivo, saboroso e místico de pai.

Pai! palavra elementar e profunda irmã de ar, água, pão, sol, dor, alegria, esperança, coisas fundamentais e essenciais, belas e terríveis como tudo quanto nos supera, tudo quanto nos vivifica, nos vê passar, e continua. Palavra de ressonâncias externas, com barulhos de lágrimas e anseios de amor, de melancolia e de piedade.

Mas também isso tende a desaparecer sob a capa de chumbo do cientificismo, do tecnicismo e do pedantismo esmiuçador e complicador, pragas que vão devorando todas as boas coisas deste mundo triste, como aquelas vacas que devoravam vacas, no sonho do faraó.

Os persas, de há dois mil anos, segundo o testemunho de Heródoto, não queriam que seus filhos aprendessem nada mais que três coisas: montar a cavalo, manejar o arco e dizer a verdade. Era um programa completo de educação individual e geral, utilitária e idealista, física e psíquica, individual e social.

Montar a cavalo - eis a primeira necessidade. Todos temos de ser cavaleiros, de guiar uma besta e de nos servir dela. Manejar o arco - arma franca, simples e forte, ato de habilidade, de sangue frio, de coragem viril e leal, abertamente praticado à luz do sol, em cima do cavalo. Dizer a verdade - condensação última e por feita de todos os deveres, dos mais sérios, mais ásperos, mais agoniantes e esporeantes deveres da vida comum. da atividade intelectual que quer pairar no alto e ser fecunda, da sublimação moral que pretende chegar à retidão, à simplicidade e ao fulgor definitivo.

Mas estas sínteses divinatórias se vão tornando impossíveis. Tudo é sabença, é técnica, é pedantologia, é complicação.

Diante daquele pai e daquele filho, fiquei a pensar na sorte das belas idéias e no irônico destino dos inventores.

O escotismo nasceu do exemplo dado pelos boys sul-africanos na guerra contra os ingleses. Ágeis e robustos, trepando às árvores como serelepes, arrastando-se por chãos e pedregais como lagartixas, varando lagoas como filhotes de hipopótamos, espertos e pândegos como gorilazinhos, prudentes como tartarugas, teimosos como porcos do mato, eram ótimos exploradores e espias de campanha.

Num contato combinado com a áspera natureza e a necessidade multiforme e imperiosa, ganhavam uma força de paciência, de coragem e de desprendimento, uma flexibilidade e rapidez de senso prático, uma destreza de espírito, que, em suma, constituíam uma bela moralidade agreste e saudável, natural como a respiração ou como as funções digestivas.

Desconheciam as intemperanças da paz e da praça, o beberete, o estupefaciente, a literatura desalmada, a gula, o dinheiro, o luxo, o mercantilismo, a cabotinagem, a intriga, a maledicência, o espirito, o eretismo sentimental e sexual. Sóbrios, tácitos, incisivos. Da civilização, só assimilavam a fina flor; da barbárie, a masculinidade sadia, generosa e jovial.

Um general britânico viu isso, franziu impressionado o sobrolho, curvou a cabeça, parafusou. Por que não transplantar essa espontânea florescência da casualidade viva para os domínios da educação social?

Voltando à Inglaterra, criou o escotismo. Era o remédio indicado para sanear várias fontes de podridão, que iam minando a fibra do old Tom.

O mundo todo pegou a fórmula e aplicou-a. Mas, geralmente, a fórmula só. O eterno prestigio das receitas não podia falhar: a receita pareceu esplêndida. Bela receita! E a receita voou para todos os cantos do mundo, como a última descoberta para limpar chapéus de palha, para curar defluxos ou para compor obras de arte geniais e vendáveis.

O resultado ei-lo aí: uma quantidade de coelhinhos guardanacionalizados; uma escola de virilidade, de independência, de selfcontrol e de ânimo benfazejo, mudada numa triste e gélida pedagogia, regular, burocrática, higiênica, ginástica, homenageativa, sob programazinhos variados que são sempre a mesma coisa. E tudo comandado a toques de apito, entremeado de discursos e - supremo horror! - tudo meticulosamente, implacavelmente mecanizado pela sapiência mensuradora dos técnicos.

Ah! os terríveis técnicos, os tenebrosos técnicos, iscados até à medula por esse flagelo do século, o tecnicismo anti-séptico, esterilizador de toda bactéria de entusiasmos e instintividades turbulentas e regenerativas!

Essa, a marcha inevitável de todas as altas idéias quando descem ao campo da realização, que é o da degradação. Esse, o irônico destino que aguarda os sonhos de todos os inventores, concepções luminosas cujo arcabouço lógico se transmite e se propaga, mas cuja alma lírica e divinatória permanece no altiplano das possibilidades incompreendidas.

Esta alma é incomunicável, como a alma do Vesúvio é estranha aos hábeis artistas que cá por baixo, colhem a lava resfriada para talhar nela as suas eternas, invariáveis figurinhas.

UM HOMEM PERFEITO

Tenho-me encontrado muito com o Sr. Cesário, ultimamente. O Sr. Cesário, às doses espaçadas e discretas, faz bem. É desingurgitante, refrescativo, uma coisa assim entre o sal de frutas e sorvete de copinho. Mas, todos os dias, em todas as viagens, é demais.

Aquilo que, de quando em quando, e por momentos, nos encanta como um livro novo, folheado a furto, com a continuação se converte num símile dessas revistas atrasadas e revistas que se nos oferecem na sala de espera do dentista ou na loja do barbeiro.

Mas tudo tem o seu lado aproveitável. O lado aproveitável do Sr. Cesário é que ele me dá lições de estilo, do estilo estabilizado e conspícuo que convém às relações públicas entre funcionários e pessoas colocadas. Ele não é, mas devia ser diretor de uma repartição.

Fala como um bom minutador de ofícios. Tem a serena compenetração de autoridade, o senso das hierarquias, o tato diplomático, o respeito das fórmulas e a impersonalidade de julgamentos que se requer num chefe acabado. Por esse aspecto burocrático, o seu contato é útil. Boa pedra de amolar. O mau é que às vezes amola demais.

Que rico fundo de idéias honestas ele possui! Em poucos dias, assim como quem não se aplica, durante quinze ou vinte minutos de bonde, fiz uma boa coleta de opiniões do meu distinto amigo.

O que não lhe faltam são opiniões. O Sr. Cesário é um homem eminentemente opinativo sem contudo ser opiniático. Já houve mesmo um indivíduo maldoso, de cujo nome nem me quero lembrar, que uma vez mo definiu com escarninho intento, nestes termos: "um filho dileto da Opinião Pública."

O Sr. Cesário sentencia, por exemplo que "tudo nesta vida é questão de ponto de vista." Afirma, acentuando o tom de convicção, a corrigir a aparente leveza da frase paradoxal, que "o senso comum é o que há de menos comum entre os homens". Também costuma declarar, com um gesto fisionômico de aguda intuição, que "tudo é relativo".

Acerca de moral, só lhe ouvi por enquanto um conceito genérico nitidamente formulado: "Inteligência sem caráter é droga".

Sobre o Além, a vida e a morte, a crença, e assuntos correlatos, costuma ser mais explícito, provavelmente porque a sua situação de amigo do vigário da paróquia e de irmão do Santíssimo lhe tem permitido certa familiaridade com o mistério.

Concede que o Outro Mundo seja coisa duvidosa, mas acha que, em todo caso não convém brincar. A esperança e o temor que se ligam ao Além são necessários e são insubstituíveis.

O que lhe repugna é o inferno. Nesse, acredita "porque é seu dever de católico nato e praticante acatar as injunções da Igreja". Mas, afinal, o verdadeiro inferno parece que "e aqui mesmo" - "se bem que não se devam aceitar certos exageros de pessimismo".

Ontem, o Sr. Cesário saiu-se com esta frase: "Deixe falar, a religião é um freio, como dizia padre Miguel, meu padrinho."

As suas opiniões sociais e políticas são do mesmo feitio enxuto e corrente:

Todas as formas de governo são boas, desde que haja honestidade.

O nosso povo não estava preparado para a República.

Governar é uma questão de bom senso e de recursos.

É um grande mal a oposição sistemática.

Cada povo tem o governo que merece; mas nem sempre.

A política de hoje é eminentemente econômica.

A maior das nossas necessidades é a educação, - em termos.

O brasileiro é muito inteligente, mas indisciplinado e vadio.

Não há questão social no Brasil, pais novo, aberto a todas as iniciativas.

Somos um povo em formação.

A boa administração depende da estreita harmonia dos poderes.

A mulher deve permanecer no seu posto de rainha do lar.

A esmola deprime e nada adianta.

O empregomania e o bacharelismo são dois males nacionais.

A retórica é outro vício brasileiro.

A dissolução dos costumes caminha a passos de gigante.

O Brasil é uma terra de poetas.

A maior das nossas desgraças é a crise de caráter.

"A lavoura é a coluna mestra do nosso sistema arterial".

Ontem, acertou de falarmos a respeito de literatura, a propósito de um romance de Macedo, que Cesário me pedira emprestado. Declarou que não era para ele, mas para a senhora. Não gosta senão de romances históricos e instrutivos, como os de Júlio Verne e Vítor Hugo.

Passou a expender idéias sobre outros ramos. Não perde tempo com poesias, mesmo porque não as entende. Os dramas e tragédias já não são para os nossos dias; ninguém mais se resolve a ir ao teatro para ficar triste; e para tristezas bastam as da vida. O teatro deve ser humorístico e moral.

Os Lusíadas, a seu ver, foram feitos especialmente para exercícios de análise. A obra pode ser muito boa, mas para quem gosta. De resto, o Sr. Cesário está convencido de que todos os clássicos, que aliás nunca leu, são cacetes e intragáveis. Parece mesmo pensar que eles escreveram expressamente para deixar modelos de boa linguagem gramatical. E, um destes dias, exclamou com recacho de homem-do-seu-tempo: "Quais clássicos, quais nada! A língua também evolui, entendeu?"

Acha que a língua italiana é a mais suave, quando bem pronunciada; mas que a mais útil, na atualidade, é a inglesa. Quanto à nossa, acredita que seja a mais difícil de todas, a mais "cheia de dúvidas e encrenquinhas". Pois se o próprio Rui Barbosa, a "Águia de Haia", levou a vida inteira estudando português.

O que aí fica é resultado de uma colheita muito irregular, mas já basta a caracterizar as qualidades fundamentais deste sólido e harmonioso espírito.

Quanto às expressões, o Sr. Cesário tem todas, todas quantas se acham consagradas pelo gosto das classes respeitáveis.

Se fosse capaz dos trabalhos seguidos, regulares e minuciosos da Filologia, eu poderia tomar o meu amigo como um compêndio vivo das filtrações eruditas e literárias de segunda mão na mentalidade média da burguesia nacional, e explorá-lo metodicamente. Daria para um belo estudo de Psicologia Idiomática, cheio de conseqüências para o literato, para o glotologista, para o educador, e até para o alienista, - um belo estudo que, sem dúvida, não seria lido senão pelos indivíduos que a Providência destacasse para lhe meterem a lenha.

As expressões frias do Sr. Cesário são algo de suculento e de opíparo. Algumas, as menos repolhudas, as meãs, ele as profere com plena serenidade. Mas como aprecia igualmente as mais pomposas, sempre arranja lá um jeitinho de as empregar, soltando-as com um certo ar brincalhão ou irônico, que lhe dá por vezes o aspecto original de um homem que acha graça nas crepitações do próprio pensamento.

Já lhe apanhei, não há muito, sem lhe mexer nas molas, referências às "trevas da ignorância", ao "santuário do lar", ao "punhal da calúnia", à "máscara do anonimato" e ao "dédalo das paixões". Foi um dia em que estava impressionado com a onda de crimes, suicídios e pouca-vergonhas que por aí vai "num crescendo assustador". Falava com tal abundância e tal veemência, que cheguei quase a desconfiar que me tivesse na conta de um dos responsáveis.

De uns dias para cá, tenho subitamente guiado o fio e dado o tom à conversação, e o Sr. Cesário se desata em chuveiros de preciosidades.

A propósito de política, lançou zargunchadas certeiras aos "eternos descontentes", que "vivem a semear a cizânia" com seus "cantos de sereia". Mas também, por um estríqueto "dever de imparcialidade", não podia deixar de "verberar o impatriotismo de certos homens colocados no galarim, que transformam em vacas de leite os postos de sacrifício a eles confiados pelo povo, a eterna besta de carga".

Terminou resumindo-se numa sentida peroração:

"Enfim, meu caro amigo! é a tal crise de caráter.

"Mas que quer? Nem a majestade da religião escapa a esse referver de paixões subalternas! Até no seio das irmandades se intromete a politicagem rasteira! Até lá, indivíduos sem entranhas vão pondo a garra, com. pés de lã, e... Homem! paremos por aqui.

"O tempora!"

De onde pude inferir que o Sr. Cesário andava às voltas com algum desaguisado na paróquia.

A um espírito assim ricamente organizado não podia faltar um certo aparelho de erudição leve. Consegui os seguintes indícios, apanhados foneticamente, como convém a coisas pescadas nas águas vivas da elocução oral:

"Laborônia vince - Cosivá ilmondo - Senon évéro... - Lemondemarche - Arraite! - Tâimismónei - Savá sandire - Via crúcis - Tante grácie, cabalhero! - Por mares nunca dantes navegados - Festim de Baltazar - Ciumento como um Otelo - As trevas da Idade Média - Crueldade neroniana - Justiça imanente - Psicologia das multidões Os meio intelectuais - O poverélo de Assis - As lições da sociologia - A ciência de Ádan-Esmite - O último romântico - Os tonéis da Danaide - Vá derrétro!"

Enfim, grande caçador de frases perante o Eterno!

O BONDE E A RUA

O bonde da tarde, hoje, foi demorado por uma qualquer manifestação popular, que lhe barrou a passagem. Os viajantes, depois de satisfeita a primeira curiosidade, obra de segundos, começavam a dar sinais de irritação, quando um orador entrou a trovejar. Essa obstrução pareceu a todos insuportável, e todavia não durou mais de cinco ou seis minutos.

Sempre é verdade que a medida real do tempo é o nosso desejo.

Isto me faz lembrar o meu colega Sinfrônio de Mendonça, que, outro dia, lá na repartição, ao inaugurar-se o retrato do chefe, quis à viva força ler um discurso. E leu, prevenindo os ouvintes: "É curtinho senhores, tenham paciência".

Esta esfarrapada desculpa com que se costumam cobrir os oradores intempestivos baseia-se toda num passe finório com as noções de tempo - a do tempo mecânico e objetivo e a do tempo psicológico ou subjetivo. Quando dizem que a peça é curta, é porque lhe aplicam a medida-relógio, como se fosse esta a que importasse aos ouvintes como se não fosse, por exemplo, uma verdade universal que o pequenino sermão de ouro que nos aborrece é dez ou mil vezes mais comprido do que a interminável lenga-lenga que nos lisonjeia.

O nosso relógio interior tem também dois mostradores, um grande e outro pequeno, mas o grande é que dá medida prática dos minutos desagradáveis, que aí correspondem às horas, e o pequeno marca a duração das horas amenas, que nele são minúsculas frações - quando o ponteiro não está engasgado.

O tempo real é conforme ao ícone que dele deixaram os gregos - um velho decrépito que naturalmente se arrasta quando caminha por seus pés, mas que também voa como um pássaro, porque tem asas, e quando bate as asas rejuvenesce.

RUFINA

O homem é um ser tão mesquinho, que onde quer que ele se ajunte logo lhe sobrevem, pelo número, uma alma coletiva, embora muito rudimentar.

A multidão que se ensardinhava em redor do orador tinha visivelmente a sua; toda ela se agitava num só ritmo, gritava com uma só voz e se enchia de braços erguidos como um só bicho a eriçar-se numa só contração momentânea. O bonde também a possuía mas indiferente, comodista e escarninha.

Uma contava o seu tempo pelo mostrador pequeno, a outra media o dela pelo quadrante maior. Eram duas entidades inconciliáveis, vivendo em duas esferas distintas e irredutíveis da duração.

As duas almas se olhavam sem se compreender: nem a da rua se aplacava, nem se inflamava a do bonde. Dois mundos com trajetórias opostas, um em ebulição, outro frio.

Um começo de automática hostilidade pairava entre um e outro. Viesse um pequeno impulso, e os dois sistemas talvez se engalfinhassem com cega violência, como dois içás colocados rosto a rosto mecanicamente assumem o papel de inimigos de morte, e se agarram e se estraçalham com um santo e inconsciente heroísmo.

Não me esquecerei tão cedo de um casal de namorados que vinha hoje no bonde.

Gente do povo, gente humilde, dessa que não transpôs ainda o limite em que o indivíduo ignorante e simples começa a ver e a querer copiar atitudes, maneiras e atos de uma camada superior. Era, portanto, de uma espontaneidade inocente e quase animal a ternura com que os dois se enlaçavam, tecendo cada um, em redor de ambos, uma teia isolante de carícias, - mãos dadas, olhos compridos, falas em tom velado e plácido, e um permanente sorriso da mais pura e imbecil felicidade.

Ele, um latagão carpintejado à larga; ela, uma bezerrinha forte e carnuda, com uma pele esticada e quente e uns cabelos ásperos e crespos de lavadeira tostada ao sol. Simpáticos. Talvez belos, não tanto dessa "beleza do diabo" (dizem os italianos), mero efeito da mocidade e da saúde, como dessa espécie de beleza promissiva, que não entra pelos olhos, que se entrevê, que é como um esboço deixado de mão quando se encaminhava para a forma perfeita.

O meu prazer foi imaginar que o latagão era eu, que a moça era Rufina. Estávamos entregues um ao outro.

Tinha-me apropriado dela com a naturalidade com que me apropriaria do meu duplo, se ele surgisse a meu lado. Fechara-a no âmbito da minha personalidade e um desdobramento, um acréscimo, uma projeção do meu ser.

Que me importava o seu passado? A mulher que se ama não tem passado. Nasceu na véspera. É a objetivação de um acontecimento interior. Não é um ser: é um fato. É um episódio novo de uma história que vem de longe. A história, com o seu ritmo, a sua lei, a sua necessidade, a sua marcha, o seu destino, engloba, arrasta, dissolve e tinge de sua cor tudo quanto colhe através do seu derrame fluvial.

A mulher que se ama começou com o nosso amor; como disse o catalão Maragall da poesia.

... tot just ha començat
i es plena de virtuts inconegudes.

De repente, o casal desceu. O rapagão foi o primeiro à saltar, e, instintivamente, voltou-se com galante dónaire e estendeu a mão à juvenoa.

Esta pulou rápida e leve, como se tivesse recuperado instantaneamente uma aptidão perdida.

Nesse momento, aquele tosco rapaz, cabouqueiro ou lavrador, nos seus sapatões entorroados, sob o seu chapéu sujo, e aquela moça que mal e superficialmente se alindara, como uma batata apenas cozinhada e descascada, me deram a impressão de duas criaturas saturadas por séculos de galantaria e de cultura.

Eram duas sementes, e já me pareceram duas flores. Eram dois bichos do chão e pareceram-me dois pássaros esguios.

O amor gera e regenera desde que surde. A função generatriz não é um acidente da sua história, nem é a causa da sua aparição: amar e gerar é tudo um, e produz partos mais temporãos e mais estranhos do que os do ventre. Tudo começa ou recomeça, e todas as fecundidades se concentram na carne e na alma dos amantes, e o próprio mundo aparece de repente refeito, banhado das claridades e tocado da magnificência de um gênesis.

Rufina...

Ora, ora, Rufina, uma simples passageira de bonde com quem eu, passageiro de bonde, me encontrei duas vezes por acaso!

O SONETO

Deus de misericórdia, como eu tenho pena dos poetas, meus irmãos! Apesar de ser eu o pobre da irmandade.

Pelo trabalho que me tem custado o soneto que empreendi há três meses, calculo as torturas em que voluntariamente se enredam os que ainda fabricam esses objetos de arte.

Dizem, que há indivíduos que sonetizam com facilidade, sem prejuízo da perfeição. Não descreio disso. Mas essa espontaneidade para fazer um soneto só se adquire depois de muito e duro labor de aprendizagem e prática do soneto. Também os ginastas fazem com a máxima facilidade e economia de esforço os mais complicados e arriscados giros no trapézio, na barra e nas argolas, - e isso está muito longe de provar que tais habilidades lhe sejam naturais como a nós outros o uso do guarda-chuva ou o trepar no estribo dos bondes.

Quanto a mim, vou desistir de concorrer aos futuros florilégios. Mas, em vez de fazer como o outro, que despreza essa forma de poesia, alegando que é velha de seiscentos anos, que o mundo está cheio de sonetos, e que os sonetistas são muito mais numerosos do que os poetas, continuo a achar que a fabricação deste gênero de peças é um útil e nobre exercício de engenho, além de ser o mais justificável dos quebra-cabeças.

Quanto a serem milhões os que se produzem, hoje em dia, em todo o mundo, e contarem-se pelos dedos os capazes de sobreviver, não vejo nisso razão para se condenar o soneto. É igualmente certo que o mundo produz cada dia milhões de rosas, e que essas rosas ainda vivem apenas, como no tempo de Malherbe, - d'un matia - isto é, três ou quatro dias; contudo, daí não se segue que a rosa se tenha tornado indigna do nosso apreço. Ao contrário, a brevidade fatal da sua melindrosa vida é um dos elementos do sutil encanto que elas desprendem, como um outro perfume.

Cosa bella e mortal...

Creio que não há nada mais difícil, ou pouco haverá, do que armar, travar e concluir um soneto de modo que ele fique cheio e redondo como uma bola maciça. Digo bola, porque o soneto, graficamente quadrilateral, é mentalmente esférico. Não tem na sua transcendente realidade, princípio nem fim: o termo aparente é que, a certa luz, se pode considerar começo, porque ninguém se inicia na compreensão justa da peça antes de ter chegado ao "final", antes de haver este lançado a projeção anímica do seu conteúdo até às primeiras palavras do primeiro verso. Assim, todas as partes idealmente se alongam num único sentido, e repassam sobre si mesmas, girando em redor de um eixo gerador, buscando mecanicamente a esfericidade a que tendem as massas em revolução.

Será isso poesia pura? Parece que não é. Mas, dado que se saiba o que venha a ser poesia pura, é evidente que essa essência, como certas substâncias delicadas e voláteis, precisa sempre de uma liga mais ou menos grosseira para subsistir.

De resto, a mim pouco me importa o nome da coisa, ou os quadros em que ela entre ou deixe de entrar. Quando, aí pelos caminhos, eu topo com uma bela teia de aranha, estendida ao sol da manhã como uma roupa de fada, para que se lhe seque o relento da noite, a mim pouco se me dá de saber se aquilo está bem construído, se não está, se o material é puro ou impuro (a natureza sabe o que seja puro ou não o seja), e se a aranha devia ou não devia fazer outra coisa.

Aceito-lhe a teia como está; e se ela palpita e cintila ao sol, toda tecida de filetes impalpáveis colhidos ao luar, às fosforescências noturnas, às azulejantes fluências matinais do córrego, à casca metálica dos besouros e se ela parece bulir no mato como um enxame de estrelinhas tontas, - paro, olho, sorrio, vou andando, e ainda volto a vista para trás. Aquilo é bonito, e acabou-se.

No soneto, como os fizeram Petrarca ou Santa Teresa, Du Bellay ou Shakespeare, a liga em que se aprisiona a essência de poesia é sutil e engenhosamente intelectual. Todos os bons sonetos são obras-primas de engenho discursivo, tocadas de um raio de poesia. Puzzle, envernizado de sonho. Gaiolas dialéticas nas quais, pelo menos, parecem revolutear penugens do pássaro que fugiu, - o tal pássaro fantástico da poesia verdadeira.

Engenho, eis o que me tem faltado para levar a cabo a minha obra-prima. Também tem faltado oportunidade. Feitas as quadras no bonde, entendeu o meu subconsciente que no bonde eu havia de fabricar os tercetos.

Fora daí, no meu gabinete, na repartição, no teatro, não me acode nem fiapo de idéia; mas no bonde nem sempre consigo a calma nem os vagares indispensáveis a esta classe de serviço.

Como este mundo anda desconsertado!

Mas ainda bem. Se os homens tivessem tempo para meditar, decerto deixariam de fazer muitas asneiras - das pequenas; mas como as premeditariam grandes e terríveis!

Hoje, depois de várias tentativas, entrei no bonde decidido a conquistar o meu sossego.

Dei logo de cara com o Sr. João Cesário, esse risonho pirata que infesta a nossa linha e assalta pobres passageiros para lhes arrancar o único money que eles têm, o tempo. Mas o Sr. Cesário não me viu, porque estava despojando a um outro. Fui para o banco mais plebeiamente preenchido, entre uma preta de xale e um cabo de polícia.

Cerrei os olhos, evoquei a imagem flutuante e delgada de Gabriela, recordei as quadras, fui avançando o pé pelo escuro da inspiração informe.

Gabriela, como ficou assentado, era uma jovem que tinha perdido todas as ilusões, coitada! Por necessidade de rima e falta de espaço, não foi possível precisar de que ilusões se tratava, sendo certo que em tudo, na vida, a ilusão desempenha um papel muito sério e ninguém pode jamais gabar-se de as haver perdido por completo. Já se disse mesmo que o homem vive de ilusões. Mas essa imprecisão de idéias é muito própria da poesia; e tem a vantagem de dar largueza bastante para as imaginações se moverem ao sabor de cada temperamento.

Gabriela perdera as suas ilusões de moça ardente e sequiosa, porque se atirara aos chamarizes e às insídias do mundo com excessiva sofreguidão e nenhuma cautela. Isto ficou registado na segunda quadra.

Agora, os tercetos é que eram elas!

Conviria acentuar que, tendo perdido as suas ilusões, a menina estava como quem tivesse perdido a túnica através de matos e pedernais, ou em luta com bichos assanhados. Esta idéia é velha, mas pondo-se-lhe um revestimento novo, ainda serve. As comparações poéticas essenciais, referentes às verdadeiras situações em que se pode encontrar uma alma nesta vida, são bem pouco numerosas, no fundo; e os poetas, por mais que façam, hão de sempre voltear-lhes em redor.

Hoje, aí vais....................
........... inteiramente nua
........................................

Repeti essas palavras vinte vezes, preenchendo os espaços vagos da pauta com sílabas soltas sem significação nem consistência, só para acentuar o ritmo e provocar a idéia. Uma espécie de massagem sobre um tumor maduro.

Mas na verdade o tumor ainda estava um tanto verde. O que sobretudo me impedia de chegar a um resultado, era o final.

O soneto, hoje estou disso convencido, tem uma causa final - o fecho deve ser achado antes do mais. É o verdadeiro princípio. Então, tudo para lá se encaminha, como no ovo se forma com segurança e tranqüilidade o pinto prefigurado.

Enquanto eu ia fazendo estas reflexões, o bonde se aproximava mais depressa do termo, e tive de adiar mais uma vez a conclusão da minha tarefa poética.

Mas hei de concluí-la. Tenho diante de mim todo o resto da minha vida. Tudo me indica que ainda poderei vir a ser o Arvers de um soneto, não direi tão acabado, mas pelo menos tão difícil de acabar.

Sainte-Beuve disse que il existe chez les trois quarts des hommes un poète mort jeune à qui l'homme survit. Mas isso não é um achado: a poesia sempre foi tida como particular companheira da juventude, nos homens e nos povos. O mais curioso é que muitos trazem consigo poetas que nunca chegaram a nascer e que são como revenants do futuro.

UM HOMEM PERFEITO

O Sr. João Cesário da Costa apareceu-me hoje muito loquaz e prazenteiro. Sentou-se a meu lado, palpou as minhas disposições auditivas, notou que eram boas, e deixou escapar a loqüela, primeiro às gotas espaçadas, depois às gotas que já quase se ligavam num fio, por fim jorro franco.

Principiou por falar do tempo, que estava "lindíssimo e convidativo." Daí deslizou para considerações acerca do nosso clima e do europeu, das nossas estações e das européias. Descambou então para o elogio da nossa "terna primavera" e da nossa "natureza exuberante". Isto o levou ao fatídico paralelo entre a natureza e o indígena; e Cesário revelou gravemente que, segundo a opinião de Humboldt, no Brasil tudo é grande, menos o homem.

Mostrei-me consternado por isso, e Cesário caiu no domínio da educação, cujo principal objetivo, no Brasil, devia consistir em debelar a empregomania, o bacharelismo e a macaqueação do estrangeiro. Quando chegamos ao ponto, o meu amigo, depois de ter passado pela política, ia bordando comentários em roda do vestido feminino e deplorando a subversão da família.

Enquanto ele orava, eu vinha-lhe mentalmente acompanhando a curva das associações de idéias e avaliando as vastas etapas que fazia através da matéria pensável, metido nas botas de sete léguas da imaginação discursivas.

É assim, justamente, que os homens práticos pensam, desde que saem do crédulo habitual das preocupações profissionais. Tomam as suas associações espontâneas e os seus estados vulgares de sentimento como legítimas formas de cogitação. E têm um grande desdém pelos poetas - sendo que poetas são todos quantos não se contentam com essa moagem perpétua de idéias feitas e de idéias que nunca se acabam de fazer.

Na verdade, isto é eminentemente prático. Nada mais é preciso para viver, e viver bem, e prosperar, e fazer jus a um mausoléu de cinco metros de altura, com cúpula guardada por um anjo de magoado semblante e grandes asas, talhado em mármore branco pelo melhor marmorista da cidade.

João Cesário tem um mérito, além de muitos outros: não é uma edição, nem mesmo uma edição barata de Acácio, versão portuguesa e pacata de Mr. Prudhomme e variedade conservadora do farmacêutico Homais.

Acácio, Prudhomme e Homais eram homens de princípios ou de ideais, ao passo que Cesário não tem convicções arreigadas: é um bom homem, arranjado, comodista, amigo da boa roupa, da boa mesa e da boa prosa, com ambições modestas e com um grande tato instintivo do que lhe pode ser útil e agradável. Incapaz das parlapatices de Prudhomme, da compenetração respeitosa de si próprio que distinguia Acácio, e de aziumados sectarismos à maneira de Homais.

Apenas se encontra com eles no terreno do lugar-comum. Mas o lugar-comum não é privativo destes ou daqueles, é a terra de ninguém onde todo o mundo, uns mais amiúde, outros mais de longe em longe e mais a medo, faz as suas incursões e as suas colheitas.

De resto será o lugar-comum coisa tão desprezível? Não, o lugar-comum é necessário. Faz parte das forças da natureza. É da natureza do espírito humano a necessidade de cunhar uma espécie de moeda divisionária das idéias, que possa andar pelas próprias mãos dos que não tenham capitais e que presta enorme serviço a toda a gente.

Se se quer encarar o caso na sua verdadeira latitude, o ponto de vista escolar, estilístico, literário, é de uma insuficiência absoluta, e por sua estreiteza e vetustez bem merece figurar também na categoria dos lugares- comuns elegantes.

O abuso desse ponto de vista crítico e aristocrático vai espalhando nos espíritos inclinados às letras e às idéias um terror excessivo e doentio do ominoso pecado. E com isso chega a criar freqüentemente uma espécie de Acácios às avessas, que repelem boas idéias por serem velhas, sem sempre forjar novas que sejam boas, e esquecem-se da corrente e desempenada linguagem da conversação, e embrulham em formas rebuscadas os mais fugitivos e ambíguos fiapos de pensamento, como quem fizesse gaiolinhas de metal dourado para guardar pernilongos.

A grande e imponente maioria dos humanos não dá nenhum apreço às idéias por si mesmas. Estas, quando caem na circulação geral, perdem toda a sua virtude abstrata, empastam-se na grossa praticidade e na violenta concreteza dos valores vitais imediatos. Descem do plano lógico para o biológico. Rousseau disse que pensar é um ato contra a natureza, e os atos contra a natureza ela os pune empeçando-os ou desviando-os, reassimilando-os e recolocando-os na órbita dos seus próprios fins.

As idéias, na marcha geral e normal da vida, têm um valor tão puramente instrumental, oportunístico e subalterno como as armas, os utensílios, os aparelhos e todas as coisas que prolongam os nossos meios naturais de ação. É preciso que um homem esteja pervertido pela literatura e análogas manias, para ter a fantasia de inventar idéias, pelo simples prazer de criar instrumentos originais. Se a faca e o martelo já foram inventados há milhares de anos, e prestam ótimo serviço, para que é que o Sr. Cesário havia de imaginar um traste novo e aperfeiçoado, só para cortar uns cipós ou para bater uns pregos de quando em quando? Não seria econômico. Enorme desproporção entre o esforço e o resultado.

Com um pequeno arsenal de lugares-comuns, Cesário está dispensado de gastar inutilmente largas somas de tempo e de trabalho. Põe a sua provisão no bolso, cada dia, conforme as necessidades, e sai para os seus negócios, para os seus prazeres de sociedade, para as suas demandas, para a sua descansada pescaria de proveitos possíveis, nas horas vagas. Surte-se com a suave facilidade de quem completa, em casa a sua toilette habitual, pondo meia dúzia de charutos na carteira, um lenço de sobressalente no bolso da calça, um canivete no bolsinho do colete.

Dá-se bem com o sistema, e a sociedade ainda melhor. Ganha esta um homem afável, serviçal, maneiro, de fácil e macio contato, simples de utilizar.

Multipliquem-se estes homens exemplares por mil, e veja-se que incalculável benefício não seria, que harmônica estabilização de um tipo social indígena, que precioso reforço de cidadãos bem construídos, normalizados, estandardizados, sem mistérios e sem surpresas, sólidos, garantidos, de uso limitado mas seguro e preciso, - como a louça inglesa, como a cutelaria de Manchester, como o presunto holandês, como o óleo de fígado de bacalhau, como o fósforo Jonkonpings, como as camisas do Porto!

Foi essa multiplicação de um tipo modesto mas viável e bom que fez aquela coesão e aquela estabilidade magnífica da sociedade britânica, - o seu núcleo resistente, a sua massa harmônica e firme, a deslocar-se através da história com o ímpeto regular de um imenso exército em marcha.

Suponham-se agora estes inumeráveis Cesários preocupados todos com fabricar idéias e esmaltá-las sob formas graciosas e cortantes. Que calamidade! Ganharíamos, talvez, algumas jóias do espírito, mas, em troca, que multidão de intelectuais neurastênicos, incertos, cáusticos, insociáveis, prisioneiros eternos de si mesmos, despidos de tolerância e de benignidade, sacrificando tudo por uma frase de espírito, inadaptáveis a todo esforço comum, inimigos de toda disciplina obscura e de todo devotamento discreto e silencioso, e enfim grandes criadores efetivos de mal-estar, de desinteligência e de estéreis, inacabáveis veleidades e agitações no seio da massa e no das moças!

MÃE

Pobre mulher, aquela boa e sincera mãe que vi ontem, tão mansa, tão entregue ao seu pequenino!

Era bonita, mas como que o ignorava. Estava tão despreocupada no bonde como se estivesse em sua casa. 'Trazia o filhinho ao regaço, e brincava-lhe com uma das mãozinhas, fazendo-a saltar, arremessando-a e abaixando-a, aos pequenos tapas, como uma bola. O pequeno ria-se de quando em quando, e a cada risada o rosto da mãe tomava uma expressão forte, escultural de felicidade plena e remansosa.

A certo momento, pegou a criança pelo tronco, pô-la em pé sobre os joelhos, e começou a sacudi-la como a pregar-lhes sustos. Fazia-lhe, ora, uma cara de surpresa cômica, arregalando os olhos; ora, uma cara de cólera, carregando as sobrancelhas, afuzilando o olhar; ora, uma cara de choro desconsolado, em que todos os músculos se relaxavam e as pálpebras e os cantos da boca descaíam.

Jogral do seu pequerrucho, essa mãe se esquecia de si, se despojava de todas as preocupações habituais, concentrava toda a sua vida naquele ser único, pequenino e fragílimo. Era um simples brinquedo em poder do seu bebê, - brinquedo todo cheinho de amor, como outros o são de serragem.

Mas, por que, deuses imortais e impossíveis! por que seria necessário que essa mãe, resumindo o mundo em seu filho, trabalhasse tão obstinadamente por gravar nele os gestos eternos da loucura humana? Gestos de fúria, de terror, de cupidez, de despeito, de ciúme, - toda a mímica do inferno mundano, - formas para ele ainda vazias, mas nas quais se irá pouco a pouco vertendo e solidificando a substância do seu pequeno Eu rarefeito e disperso?

Ama-o como a um anjo, e luta por fazer dele apenas um destes vasos de miséria, de impureza e de sofrimento!

Belo e medonho, o amor de mãe. Suavíssimo e terrível. A sombra dos seus gestos, branda como a dos ramos, prolonga-se até o horizonte da vida, onde a sombra enorme da Fatalidade passa arrastando pelos cabelos a sombra da Ilusão.

RUFINA E O SONETO

Pobre Rufina! Tão juvenilmente graciosa e linda ainda há dois meses... Parecia arder em mocidade e beleza como uma pedra preciosa. Agora, dá-me a idéia de uma pérola moribunda.

É assim este mundo; um resfriado, uma pleurisia, três semanas de cama - e eis um corpo e uma alma completamente modificados, e uma vida clara e leve como um regato da montanha mudada num ribeirão turvo do vale triste!

Viajei hoje com ela. Descorada e descarnada, metida num vestido escuro e pobre, era apenas uma sombra da outra Rufína. Disse-me coisas graves sobre a vida. Queixou-se das suas ilusões malucas, que a conduziram até há pouco através das almas e das coisas como através de uma festa, para, de repente, a abandonarem entre essas duas megeras - a Solidão e a Necessidade.

Chegou a falar-me de Deus, e, entre dois acessos de tosse, perguntou-me, com a simplicidade suprema de quem pedia uma informação:

- "Será que ele me aceita?"

Em que embaraço me pôs: Pedir a mim, pecador encoscorado, um raio de esperança e consolação - porque era evidentemente o que pedia, na simplicidade triste daquela pergunta! Valeria o mesmo querer refrescar os lábios em febre com o suco de uma pêra de campainha elétrica.

Tive ímpetos de endereçar ao vigário da nossa paróquia. Mas o santo homem estava já tão acostumado a lidar com almas em pena! Era possível que não lhe desse maior atenção, que a tratasse com desdenhosa bonomia, como fazem certos médicos, excepcionalmente, com os clientes pobres: "Isso não é nada. Está nervoso. - Dor no cogote, Há de ser mau jeito. - Febre, é? Uhn... - Qual! não tem importância. Apareça um dia lá no consultório".

Não, não a mandaria ao vigário, poderia vir de lá com as feridas banhadas em bálsamo suavíssimo, e poderia vir com elas envenenadas de despeito e de revolta.

Eu estava para lhe dizer que sim, que Deus a receberia nos seus braços com paterno carinho, porque nada pode ser mais agradável ao Senhor de toda a sabedoria e de toda a misericórdia do que uma alma despojada de mundanidades, nua, na plena e corajosa nudez da humildade, do desengano e do arrependimento.

Quando, porém, decidia estas dúvidas de consciência e preparava esta resposta, Rufina ergueu-se, fez soar a campainha, despediu-se e esgueirou-se. Fiquei a vê-la do bonde, que estacionara por um momento. Reprochava-me com raiva as minhas eternas indecisões de animal imprestável.

Ela foi para a calçada, e pôs-se a caminhar de um jeito meio automático, direita, impassível, num passo miúdo e rígido de boneca mecânica, a cabeça pensa para um lado - como quem caminha com indiferença, de alma vazia, para a última renúncia ou para a morte...

Pude saber depois que ia à costureira.

Somos todos horrendamente egoístas. Nunca tive como hoje a sensação do que valem todas essas florescências admiráveis da vida nobre, as belas idéias, os ideais formosos, os sentimentos altos e delicados.

Nem bem Rufina desaparecera de minhas vistas, aquilo de eu a ter comparado mentalmente a uma alma despojada de mundanidades, nua, inteiramente nua, voltou a borboletear-me no espírito como um remorso gostoso. E lembrei-me logo daquele meu soneto parado entre os andaimes; como uma dessas igrejas que levam anos a construir e ficam anos à espera de recursos.

Agora, concluiria a obra. Aferrei-me a ela pelo resto da viagem.

Rufina, de passagem por mim tocando-me de leve, pusera-me em movimento a engenhoca da poesia, como quem toca inadvertidamente num pé de "mimosa pudica", ou como quem sacode sem o querer um relógio engasgado, fazendo-o trabalhar.

É essa a finalidade dos outros, no sistema especial da nossa vida de cada um: pôr em movimento algum dos relógios engasgados que temos conosco.

O caso é que concluí o soneto. A bem dizer não o concluí no bonde: acabei de concluir na repartição, apesar de um parecer urgente que me atenazou o dia. Mas a inspiração é assim: quando vem, vem de fato, e não há urgências que se lhe oponham.

Agradeci ao destino o ter-me deparado Rufina, não só porque daí proveio a conclusão do soneto, como porque me permitiu banir dele a tal Gabriela. Eu já andava seriamente implicado com essa negrinha vagabunda, caçada na sarjeta do noticiário. Decididamente, não dava nada. Logo o primeiro verso:

Já não tens ilusão, oh Gabriela!

era de uma inépcia absoluta. Que é que tinha o público que ver com esse nome próprio. E, além do mais, um decassílabo frouxo, - que é ainda pior do que uma frouxidão de bom senso. Pude substituí-lo com vantagem. E o resto - foi uma sopa:

A UMA TUBERCULOSA

Já nenhuma ilusão tua alma estrela;
Nenhuma abrolha em teu caminho triste.
Tudo te é negro: e em tudo quanto existe,
só o que existe de mau se te revela.


Um dia a Vida apareceu-te à ourela
da estrada, e te sorriu. Tu lhe sorriste,
E a seus braços voaste. E assim te viste
entre as garras da bruxa horrenda e bela.

Hoje... Ah! hoje, aí vais por tua estrada
como uma doida que vagasse nua...
Não és mais do que uma alma - alma despida;

E tão indiferente, tão gelada,
tão tristonha e remota como a lua,
refletindo de longe o sol da Vida.


Finis truncat opus